* Por Paula Dip *

O escritor encontra sua voz

Parecia um sonho: jantares, cafés e licores, conversas ao pé da figueira, discos voadores riscando o céu, astrologia, ciência, filosofia, drama e muita literatura. Tudo podia acontecer naquelas varandas amplas que lembravam o sol se pondo, entre sombras avermelhadas e silhuetas de cães – onde Hilda e seus amigos viviam a reinventar o mundo.

As noites na Casa do Sol eram intermináveis. Caio nunca vira nada parecido a esse clima de festa onde tudo era permitido, inclusive o trabalho: um lia, outro escrevia, e todos falavam de sexo, amor e morte com a mesma naturalidade que uma mãe insiste para que o filho coma verduras.

De manhã, Caio ficava preguiçando na cama antes de despertar, mas naquele dia foi diferente. Pulou dos lençóis, lépido, esfregou os olhos, passou as mãos nos cabelos para afastar a ressaca e foi para a frente do espelho, queria ter certeza de que estava mesmo ali. Concentrado, ligou o gravador para registrar o acontecido, disse algumas palavras, rebobinou a fita, clicou no play e ouviu: “Muito obrigado, meu Deus.” Então, repetiu muitas vezes, testando sua nova tessitura de barítono e se beliscando para ter certeza de que não sonhava.

A garantia de que aquela voz profunda e máscula saía mesmo da própria garganta.

Pura verdade: sua voz tinha mudado. Ele não ia mais sentir vergonha daquele tom esganiçado que produzia cada vez que abria a boca para falar, pesadelo que vivia desde a adolescência. Na sala de aula, pedia a um amigo que respondesse a chamada por ele. Na redação da primeira revista em que trabalhou, passava por antipático, não dizia uma palavra.

De repente, não mais que de repente, articulava as cordas vocais num tom grave e sensual que seria sua marca registrada no futuro.

Finalmente, ainda que tardio, o menino encontrou sua voz. Um verdadeiro milagre! Ele escreveu aos pais:

Casa do Sol, 29 de outubro de 1969.

Queridos pai e mãe, esta é uma carta só de boas notícias, portanto preparem-se. Em primeiro lugar a minha voz melhorou!

Foi uma mudança completa: estou com uma voz muito bonita, grave, forte, perfeitamente normal. Tudo começou quando Hilda e Dante me deram de presente um gravador (eles são mesmo maravilhosos). Gravei a minha voz vários dias, várias vezes, pensava em fazer exercícios, melhorar aos poucos. Até que ontem à noite, de repente, a voz mudou. Fiquei assustadíssimo, achei que fosse uma melhora repentina e que logo ia voltar a ser como antes. Aí fiquei umas duas horas falando no gravador, e a voz continuava ótima. Hoje de manhã mostrei à Hilda, ela ficou felicíssima. Dante também, foi uma verdadeira festa. É impressionante a mudança, vocês vão ficar tão bobos quanto eu quando ouvirem. Me sinto felicíssimo, isso resolve praticamente todos os meus problemas, posso fazer o que quiser, falar com quem quiser, ninguém vai rir nem achar esquisito. A única explicação que tenho é que se trata de um autêntico milagre. Amanhã vou num otorrinolaringologista aqui de Campinas, para ver se não há problema de forçar demais a garganta, acontecerem coisas péssimas depois. Acho que não. Me sinto perfeitamente à vontade falando assim. Que pena que vocês não possam ouvir, ficariam alegríssimos. Depois, não é só uma voz normal; é principalmente uma voz bonita, charmosa, sei lá. Fiquem contentes comigo. Graças a Deus tudo melhorou. Vou sábado para o Rio. Escrevi para o Francisco dizendo que eu só tinha cem contos, se ele não se importava de me hospedar por um tempo e até mesmo me pagar algumas refeições até eu arrumar onde morar e receber o primeiro ordenado. Ontem recebi um telegrama dele: “Te espero de braços abertos.” Assim, decidi ir. Essa voz nova torna tudo mais fácil, me sinto com coragem para enfrentar qualquer coisa… Francisco e o rapaz que mora com ele, Hilton Papini, são pessoas maravilhosas, e vocês não têm absolutamente com que ficarem preocupados.

Tenho certeza que tudo vai sair às mil maravilhas. Nunca tive tanta certeza de alguma coisa.

Recebi também uma carta duma amiga minha do Rio, escritora, Nélida Piñon, dizendo que já encaminhou os contos que havia deixado com ela para os suplementos do Rio e para outras revistas que não sei ainda quais são, pois ela não explica na carta. Em breve estarei muito bem de vida, me sentindo feliz e realizado, vocês vão ver. Ainda não soube o resultado daquele concurso que estou participando e que, se vencido, me dará um milhão mais a publicação do livro. Mas tenho certeza de ganhar. Vocês vejam que coisa estranha e mágica: três noites atrás, sentei na varanda e comecei a olhar Lua cheia, que estava muito bonita. Aí, de repente, me deu uma sensação esquisita, senti que eu podia fazer três pedidos e que seria atendido. Aí, pedi primeiro que minha voz melhorasse; segundo, para ir logo para o Rio; e terceiro, para ganhar esse concurso. No dia seguinte, recebi o telegrama do Francisco (o segundo pedido). Ontem a voz melhorou (o primeiro) − portanto agora só falta ser atendido o terceiro.

É muito estranho. Mas eu prefiro pensar que essa melhora inexplicável seja uma prova da existência de Deus, e de que ele me protege. Ou de Deus, ou de bons espíritos, não sei.

Certas coisas são tão evidentes, apesar de inexplicáveis, que a gente não pode deixar de acreditar. No mais, aqui tudo bem.

Amanhã é o aniversário do Dante, e sexta há uma exposição das esculturas dele na casa de uma grã-fina de Campinas, casada com um americano. Esse casal vai oferecer ao Dante uma festa chiquérrima, com uísques estrangeiros, caviar, essas coisas. Estarei lá, com a minha nova voz. No dia posterior, sábado, irei para o Rio. Portanto, vai ser um fim de semana bastante movimentado. Estou me sentindo imensamente feliz.

A minha única mágoa é não poder estar perto de vocês todos. Seria maravilhoso se eu pudesse ir até aí no Natal ou no Ano-Novo, quem sabe no Carnaval. Vou fazer o possível, mas tudo depende do emprego que eu arranjar. Hilda está muito bem e manda abraços para todo mundo. Dante também.

Escrevam logo.

Toda a minha saudade e o meu amor.

Seu, Caio

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A carta em que relata aos pais sua mudança de voz é uma das mais conhecidas, inclusive porque revela o cuidado com que ele registrava os eventos de sua vida, dos milagrosos aos mais corriqueiros. Desde menino ele escrevia tudo o que pensava em seus diários, e enviava suas cartas desejando secretamente dividi-las com seus leitores a cada dia mais numerosos. Como sucumbiu a uma morte anunciada, teve tempo de sugerir aos amigos que tornassem pública a sua correspondência.

O escritor e professor de literatura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Luís Augusto Fischer, acredita na importância dessas cartas e na vocação geracional da obra de Caio Fernando Abreu:

Nas cartas, Caio é muito engraçado, e se olharmos com a distância adequada, aquilo ali tem a importância dos contos e das crônicas dele. O que eu quero dizer com isso é que aquilo é literatura e tem a mesma força de seus contos e crônicas. A obra dele é um registro daquele momento, daquela geração.

Caio, por sua vez, dizia:

Penso no escritor como fotógrafo do seu tempo, embora não tenha essa preocupação deliberada com a contemporaneidade do texto. Sinto-me extremamente comprometido com as coisas que a minha geração conheceu. Vivi os anos 1950, o existencialismo, o movimento beatnik. Mas vivi também, graças a Deus, o movimento hippie, profunda e sonhadoramente. Minha literatura tem a marca da contracultura, e está fatalmente definida por essas experiências.

Caio viveu na Casa do Sol durante o ano de 1969, e de lá foi algumas vezes ao Rio, São Paulo e Porto Alegre. E uma das primeiras viagens de Caio desde sua mudança para o sítio de Hilda foi para o Rio de Janeiro, em 1971, ocasião em que conheceu o escritor e dramaturgo Antonio Bivar, de quem era fã. Em 1969, Bivar havia ganho o Molière de melhor autor teatral pela peça Abre a janela e deixa entrar o ar puro e o sol da manhã, e em 1970 viajaria para Londres, onde viveria por cerca de um ano. Caio admirava a dramaturgia inovadora dele, com quem tinha em comum a luta contra a repressão, que Bivar descreve em seu livro Mundo adentro vida afora:

Por causa da bandeira hippie a repressão policial da ditadura tentava nos enquadrar, e de vez em quando éramos presos sob o pretexto de “averiguação”. Éramos encanados na mesma cela com presos de outras extrações sociais para sermos liberados na manhã seguinte. Tudo era válido. Considerávamos a experiência como aprendizado na escola da vida. No Rio acontecia diferente. Alguns piravam só para frequentar o Pinel. Ainda no Rio muitos buscavam a internação no instituto da dra. Nise da Silveira. “A loucura era o sol que não deixava o juízo apodrecer”, frase atribuída a São Francisco de Assis tornada bordão hippie. O espírito franciscano também fazia parte da nova atitude.

Durante as viagens, Caio Fernando registrava em cartas e contos o seu dia a dia; os seus conflitos internos, chamados por ele de “mergulho no mais fundo de mim”, que permeavam anseios de toda uma geração. Caio mergulhou na contracultura, lançou desafios e ideias com uma lucidez corajosa que impressiona, até hoje, pela aguda percepção de como seria a nossa vida no futuro. Viveu à frente do seu tempo, como um vidente que tinha consciência do dom:

Sinto que sou um profeta. Parece que tem um negócio suspenso no ar, algo que se relaciona ao mesmo tempo a Cristo, aos bruxos, aos santos. Dentro de pouco tempo: quem não se tornar bruxo ou santo não vai sobreviver. Estamos entrando numa faixa de espírito. É pena que você viva isolada na fazenda e, naturalmente, fique um pouco distanciada de todo esse processo – se você vivesse num centro maior ia ficar impressionada como as pessoas não suportam mais coisas como máquinas, ruídos, trabalho, filas, horários – todo mundo está procurando se evadir – ou buscar um sentido maior – através das coisas do espírito.

Sim, suas epístolas são como que o testemunho de um profeta do apocalipse, um herói às avessas, um homem que viveu intensamente os anos de sexo, drogas e rock and roll, morreu vítima da Aids e cuja história já rendeu livros, filmes, peças de teatro, compêndios de cartas, teses e ainda está longe de se esgotar. Parte dessas cartas está no livro Caio Fernando Abreu: cartas, de Italo Moriconi (Aeroplano, 2002), e nos três volumes do projeto Caio 3D (Agir, 2005). Nas redes sociais, suas palavras e pensamentos continuam a circular, como se fossem pinçados de uma correspondência virtual que continua a fluir, caudalosa.

Há várias páginas com citações e textos completos do Caio, das redes sociais e memes aos blogs, mas como acontece com Clarice Lispector, Fernando Pessoa e outros grandes autores, há citações atribuídas erroneamente a ele.

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Trecho inédito do recém-lançado Numa hora assim escura, de Paula Dip, cedido pela editora José Olympio com exclusividade à São Paulo Review. O livro mostra a amizade literária entre Caio Fernando Abreu e Hilda Hist

Na foto: Caio, Lygia Fagundes Telles, um amigo desconhecido e Hilda num carnaval, em Campinas 

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