*Por Haron Gamal*

O prólogo de A Hora do Gato, de João Paulo Vaz, é um poema do próprio autor, um texto sincopado, sem vírgulas, onde palavras-chaves ressoam como as teclas graves de um piano:

Sol da manhã. / Muro telhado árvore asas pios pardal rolinha músculos salto garras dentes penas dentes sangue penas carne carne.

A leitura deste trecho, ao qual retornarei no final desta análise crítica, já aponta as características de linguagem do autor e sugere o diferencial entre civilização e selvageria. Esse estilo continua presente logo na página 13, ainda no início do romance:

Sobreviver é procriar. E é disso que se trata, ou se tratava, porque, no caso dos humanos, há um fato novo: a exaustão dos chamados (pelos humanos) recursos naturais invalidou a fórmula original. Se, para os outros seres vivos, sobreviver e procriar continuam sendo as grandes metas, para os humanos, já faz sentido a fórmula sobreviver ou procriar.

A Hora do Gato, de João Paulo Vaz, surpreende o leitor desde as primeiras páginas. A narrativa apresenta Gregório, um personagem peculiar, aprisionado em hábitos arraigados e na morosidade de sua vida cotidiana, isolado do mundo ao redor. Gregório, um homem solitário, sem amigos ou relações afetivas, vive confinado à sua poltrona e à monotonia. No entanto, algo inesperado altera essa rotina: um gato aparece no parapeito de sua janela.

Enquanto a vida humana é essencialmente complexa e problemática, a de um gato parece ser simples, limitada às necessidades básicas de comer, beber, dormir e se reproduzir. No entanto, o livro nos convida a questionar: qual dessas vidas oferece mais sentido e liberdade? Gregório, diante dessa dualidade, se vê tentado a abandonar sua condição humana em troca da aparente simplicidade e leveza do felino.

No romance, esse dilema existencial ganha profundidade. Há uma referência à trilogia sartriana, especialmente à obra A Idade da Razão, como contraponto às inquietações de Gregório. Porém, o entendimento filosófico que ele tinha na juventude perde força na maturidade, e a complexidade existencial é substituída por uma crescente fascinação pelo gato. O desejo de aniquilar o humano em si e abraçar a essência animal torna-se cada vez mais evidente.

Ao contrário de Kafka, que em A Metamorfose aprisiona seu protagonista na carapaça de um inseto, Vaz apresenta Gregório encontrando uma possibilidade de liberdade ao observar a agilidade e leveza do gato. Em vez de carregar o peso insuportável da existência, o personagem vislumbra uma oportunidade de se reinventar. O livro, assim, se revela uma crítica ao conceito de humanidade, questionando se realmente somos seres pensantes criadores de grandes obras ou apenas criaturas que invejam a simplicidade do animal.

A inversão de papéis, que já se anuncia nas primeiras páginas, coloca em xeque a essência da natureza humana. Não é uma obra que apenas defende os direitos dos animais, como fazem os veganos e ativistas, mas que critica o ser humano a partir da perspectiva animal. João Paulo Vaz nos obriga a questionar até que ponto nossa inteligência e civilização nos afastaram de nossa própria natureza selvagem.

Há um tom quase filosófico ao longo do romance, evidenciando que todos compartilhamos uma origem selvagem. Ironia das ironias, o ser humano, ao longo do tempo, tornou-se o mais selvagem dos seres. Sua inteligência, em vez de amenizar a violência, potencializou-a, criando mecanismos de destruição e dominação que ultrapassam qualquer ferocidade animal. O autor explora minuciosamente a essência do gato, suas rotinas pelas ruas e telhados, suas ameaças cotidianas. Até o carinho humano pode assumir um caráter ameaçador para o gato, já que a lógica humana, devastadora, não respeita a liberdade inerente a um ser que deveria ser indomesticável.

No desfecho, Vaz nos leva a refletir sobre a verdadeira natureza da liberdade e o que perdemos com a civilização. O gato, com sua elegância e independência, não teme predadores naturais; o verdadeiro perigo vem da configuração urbana e da lógica destrutiva do ser humano. A obra questiona: será a vida humana realmente superior, ou há algo mais autêntico e verdadeiro na simplicidade do gato, que não precisa justificar sua existência?

Retornando ao prólogo:

Sono. / Sol da tarde. / Automóveis cachorro telhado vento brisa fome. / Noite. / Esgoto barata bueiro tocaia sombra ratorato salto garras dentes sangue dentes sangue dentes carne sangue couro dentes carne carnecarne. / Madrugada. / Chuva. / Frio. / Sol da manhã.

            E assim o ciclo do gato se completa. Para o homem, ou seja, para o civilizado, o sol da manhã parece mais distante.

Dois trechos de A Hora do Gato:

Página 16

            As economias estão no fim. Deveria estar começando a sair de casa, procurar emprego, retomar antigos contatos, mas, a cada semana, adia esse movimento para a semana seguinte. Talvez, se a situação do país fosse outra, se ainda houvesse alguma perspectiva de… Uma batida leve interrompe a meditação de Gregório. Um gato surgiu no parapeito da janela, quase como uma aparição. Veio do telhado da casa vizinha com um daqueles saltos felinos precisos, a propulsão exata para chegar ao destino com velocidade zero.

            Estranho gato de rua. Magro, cinzento, sujo, decerto faminto. Mas há nele, na tranquila superioridade com que olha Gregório, uma dignidade desafiadora.

Gregório se deixa ficar na poltrona, contemplando o animal. Sentado no parapeito da janela, o gato o encara, imóvel, as patas dianteiras e traseiras juntas, o corpo esguio apoiado nelas num prumo perfeito. Lembra uma estatueta egípcia.

Há alguma graça nessa troca de olhares, de igual para igual, em que o felino parece tão convicto de sua superioridade sobre o humano. Gregório aceita o jogo. Quanto tempo o gato será capaz de manter o olhar? Parece completamente seguro de si, o que é natural, pois pode saltar de volta ao telhado quando quiser.

Recostado na poltrona, Gregório não é uma ameaça para o gato. Nem o gato ameaça Gregório. O olhar perscrutador do animal não tem o toque de desconfiança que costuma acompanhar um olhar fixo humano e poderia provocar em Gregório a sensação incômoda de ter seus pensamentos íntimos devassados. Mas é um olhar profundo.

            Começa a anoitecer e Gregório ainda não acendeu a luz. O gato tem as pupilas dilatadas. Gregório fixa o olhar nelas. Dois círculos negros brilhantes.

Aos poucos, o jogo entre o homem e o gato vai adquirindo um padrão. Se o olhar do gato parece atravessar o seu, o seu mergulha cada vez mais fundo no do gato, o que Gregório acredita dar a si, segundo algum critério indefinido, uma clara superioridade. Desacatando com sua postura perfeita o homem largado na poltrona, o gato começou o jogo com vantagem. Mas, à medida que o contato entre eles se reduz ao olho no olho, a vantagem há de ser do homem porque, por trás do olhar humano, trabalha uma mente racional para a qual o cérebro limitado de um bicho não é páreo, de modo que, oprimido pela superioridade do homem, o bicho logo saltará de volta ao telhado de onde veio. Movido por essa certeza, Gregório fixa com mais intensidade as pupilas negras do gato. Concentra o olhar nelas a ponto de apagar da mente a moldura da janela, a noite lá fora, tudo que não seja o gato e depois nem o gato inteiro, apenas os olhos dele e então nem mesmo os olhos, apenas as pupilas negras e brilhantes como dois poços noturnos que aos poucos se fundem num único redemoinho negro em cujo vórtice o mergulho é tão natural, inexorável e vertiginoso quanto um orgasmo ou a morte.

            No instante seguinte, sentado sobre as patas traseiras no parapeito da janela, Gregório contempla seu próprio corpo abandonado na poltrona.

Página 23

            O que se faz com uma experiência que não faz sentido e não pode ser associada a qualquer outra anterior? Uma experiência que nem ao menos pode ser compartilhada. Quem acreditaria? Seria tomado por louco, da mesma forma que ele mesmo, até pouco antes, tomaria por louco qualquer um que lhe contasse algo parecido. Trocar de corpo com um gato é como ser levado por extraterrestres a um passeio em outra galáxia: um acontecimento que você deve guardar para si se não quiser ser discriminado pelo resto da vida. Quem sabe quantas pessoas já viveram experiências assim e se calaram? Talvez um dia venha a revelação. Cientistas de alguma universidade importante transferirão para corpos de cobaias as mentes de 50 voluntários, ou uma comissão de extraterrestres fará contato e se apresentará oficialmente à onu. Então, centenas de pessoas que andaram em corpos de animais ou em discos voadores começarão a dar depoimentos sobre suas experiências até então secretas. A elas se juntarão milhares de malucos, farsantes e inventores de histórias em geral. Depois de algum tempo será raro encontrar alguém que não conheça pelo menos um amigo que tem um primo que já esteve em Alfa Centauro ou já foi um canguru.

            Essa linha fútil de raciocínio é claramente um artifício de Gregório para evitar a questão que o desafia: “que porra foi aquela?” Ele não tem a menor dúvida de que aconteceu uma troca de corpos entre ele e o gato. É impossível, mas aconteceu. Precisa refletir sobre isso.

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A Hora do Gato, de João Paulo Vaz (7 Letras, 114 páginas)

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