Resenha: O irmão alemão, de Chico Buarque

chico

Por Raimundo Neto *

Chico Buarque descobriu um irmão alemão, Sergio Ernst, por acaso. Descobriu a ideia, não a descoberta em si. Numa conversa jogada fora ele soube que um irmão, filho de seu pai, morava na Alemanha. Aproveitou a palavra descartável e reciclou-a através de uma busca exaustiva. Descobriu, pelos muitos detalhes que distanciam e nunca aproximam, que seu pai, Sergio Buarque de Holanda, viveu um romance com uma jovem alemã e a engravidou, mas nunca conheceu o filho.

Anos depois, trocas de correspondências fazem-se entender que Sergio e o nazismo alemão se correspondiam: a criança sob a guarda do governo precisava ser liberada para adoção, e Sergio tentava explicar seu interesse em assumir o filho ou ajudá-lo à distância. Quem narra é Francisco de Hollander, filho de Sergio de Hollander, ou Ciccio, ou o Chico.

Se em Estorvo não há variações de tempo, é em O irmão alemão que Chico mistura presente-passado-futuro no mesmo movimento: um tremelicar de pálpebras, um pensamento avulso, uma página em movimento: e no instante seguinte tudo é outro, mas ainda no mesmo lugar. Em Leite Derramado, a História latia e mordia pela boca murcha de um velho esnobe, aqui, a História do Brasil e a história de Chico estão combinadas às estórias de Ciccio.

As imagens-cinema de Benjamim também estão aqui. A linguagem que se desdobra em linguagem, a questão do duplo ficcionado em Budapeste são elementos presentes em O irmão alemão, mas aqui o duplo é entre Chico Buarque de Holanda e Francisco de Hollander: o mesmo-outro que sabe-se ficção desde a primeira linha.

Ao saber da existência de um irmão alemão, Francisco de Holander caminha a procurar vestígios do irmão perdido em cartas, sussurros, detalhes soltos em não-ditos. O irmão alemão não é indefinido: na construção da narrativa do personagem Chico, ele existe desde o momento em que tudo é inventado.

Francisco de Hollander, Ciccio, cresceu na palavra, com ela e por ela, e assim constrói uma narrativa apurada de uma vida romanceada. Ciccio cresceu entre os livros, e as brechas nas estantes (“como um canino extraído de dentadura acavalada”) revelavam o olhar curioso do escritor que não se revela completamente, e guarda a história de sua palavra como se cuidasse de algo impossível.

O tempo passa, corre, transfigura-se em cada capítulo; o leitor presencia o crescimento do menino Ciccio no tempo e no espaço da ficção, e as pernas da narrativa dão passos comedidos que levam o leitor a compreender, em algum momento, que é impossível dar saltos entre passado e futuro, que o caminhar de um para o outro é lento, portanto exige pernas curtas, daí pensa-se em mentira, e mentira também tem perna curta. Assim, se toda mentira é ficção e nem toda ficção é mentira, o que existe de verdadeiro no que está narrado, escrito e declarado? E o quanto isso realmente importa?

Ciccio ficciona com tanta convicção sobre a possibilidade de encontrar o irmão-alemão que acredita na verdade inventada. Percorre o caminho da imaginação e é levado pela memória. O passado de Chico não é o futuro de Ciccio; o mesmo futuro que não é absolutamente ficção, visto que há chances de que o irmão-alemão deixe de ser invenção e apareça, faça parte do que é real em sua vida, um certificado em carne-osso-e-linguagem de que a presença fantasmática se corporifique e corresponda às expectativas.

A ilusão se desfaz, e a realidade atinge as precipitações alarmadas de Chico. A imaginação deixa sempre uma ponta solta, que se desenrola no momento seguinte, sem fim.

E a narrativa é elaborada a partir de pistas impossíveis de confirmação, cartas antigas escritas em alemão, outras tantas e suplicantes escritas pelo pai para o governo alemão, cartas atenciosas que desbravavam a distância e arrependimentos em busca de um filho que é pura presença de espírito; fotografias de afetos paralisados, a alegria momentânea de uma dúvida sempre antiga; o silêncio dos pais a respeito do irmão-alemão; um pai ocupado com os livros, uma mãe perdida em cuidados domésticos, um irmão (brasileiro) preso a conquistas virginais com garotas apaixonadas, e Chico, dentro de todas as faltas, preenchido por palavra.

Uma menção a Borges me remete a O Aleph (num sótão de uma casa encontra-se um “ponto” através do qual se pode enxergar o Universo todo, passado e futuro. Borges empresta ao leitor a perspectiva do infinito: passado, futuro, o Universo).

O personagem Chico construiu um Aleph com suas palavras sobre sua busca. A imaginação investiga o passado e acrescenta detalhes ao futuro impalpável, e a partir da informação (único detalhe concreto) de que existe um irmão desconhecido na Alemanha, o infinito arrebenta nas palavras e o narrador, que é dois Chicos pelo menos (o Hollander e o Buarque), segue imponderável, descontrolado rumo ao sem fim da imaginação.

A cada capítulo o passado-Ciccio e aquilo que pretende ser vive em desordem; na cabeça do personagem passado e futuro estão alinhavados, muitas vezes misturados, e isso é mérito do escritor Chico, proposital, acredito eu.

Pergunto-me se é tão diferente de como acontece conosco diariamente? O hoje, as memórias e as projeções de futuro, vão e voltam a todo instante, várias vezes ao dia, confundindo o discernimento e fazendo-nos acreditar que ainda temos tempo suficiente para viver tudo o que imaginamos. O que os Chicos talvez já saibam é que, em algum momento, a realidade escrita é mais confortável que a vivida.

Chico quis inventar-se ao ficcionar a vida. Não é sobre a vida do Chico, trata-se apenas de uma aproximação, a vida inventada que todos nós experimentamos, mas poucos sabem executá-la em 236 páginas com tanto esmero e amor pela linguagem quanto Chico Buarque.

O irmão alemão, de Chico Buarque (236 págs., Companhia das Letras)

Avaliação: bom

IRMAO-ALEMAO

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Raimundo Neto publicou contos na extinta Revista Malagueta e no site da revista Bravo. Venceu um concurso literário (Contos de Teresina  – 2º colocado). Escreve coluna no site O Pensador Selvagem. É colaborador da São Paulo Review

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