História de amor com três desfechos

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“Escrever um poema é como ir à praia, dar um mergulho e voltar pra casa. No caso do romance, você tem que atravessar um oceano inteiro, a braçadas, sem saber se conseguirá chegar ao final da jornada. Muitas vezes, você nem passa da arrebentação; em outras, se perde no caminho e uma correnteza o traz de volta ao ponto de partida. Para fazer a travessia há que se ter muita concentração, disciplina, paciência e perseverança.”

A frase acima é do poeta, escritor e músico Claufe Rodrigues, que retorna à prosa com Cachorras, 13 anos após sua estreia na ficção. A história traz uma teia hábil de suposições, propondo três desfechos plausíveis para as aventuras dos amigos de infância e parceiros na extinta banda Os Miseráveis, Angelo (Billy Dog) e Demetrio.

Eles escolheram caminhos diferentes, mas, cada qual ao seu modo, está num beco sem saída – na música e na vida. Autoexilado em Curuti, cidade do Sul, Billy Dog pede socorro a Demetrio, ante o iminente retorno de Brenda, misteriosa mulher que o abandonou há um ano.

Ao longo de dois dias, Dog narra ao amigo a sucessão de acontecimentos que o levaram ao estado de perdição física, mental e espiritual em que se encontra, enquanto a história se encaminha para um surpreendente desfecho, com tintas de tragicomédia.

Rodrigues conta que, primeiramente, a história foi escrita como roteiro de cinema. Foi, então, adaptada para romance, num trabalho de um ano e meio.

Além de Cachorras, ele prepara a edição de Poesia quase completa, obra que reúne seus oito livros de poesia. Para o ano que vem, está prevista ainda a publicação do seu primeiro infantil, Pipoca e cafuné – A hora dos gatos, e a produção de dois trabalhos musicais.

Cachorras, de Claufe Rodrigues (Maquinária Editora, 144 págs.)

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Leia trecho da obra:

Toneladas de silêncio desabam sobre os bem cuidados quarteirões do bairro Verdes Vales, na zona B, destinada a moradores que ganham entre cinco mil e dez mil reais por mês. Nas ruas, de vez em quando você vê um vendedor, um pastor de almas, um gari, um fiscal da prefeitura, um cobrador, um visitante perdido. Mas os vizinhos vivem trancafiados em castelos de brinco, e só saem de carro. Se eles promovem jantares e piqueniques, se comemoram datas festivas, se costumam confraternizar entre si? Talvez no recato de quatro paredes; em público, nunca vi.

As palavras de Angelo ressoam na memória de Demetrio enquanto o táxi alcança a rua de destino. O visitante constata que o retrato ligeiro de Curuti, pintado pelo amigo no último telefonema, corresponde à realidade.

Quando o GM Cruze estaciona em frente ao endereço combinado, o CD player está tocando baixinho outra música dos Miseráveis, aquela que fala de pessoas vulgares em suas vidinhas normais. O passageiro passa duas notas de cinquenta ao motorista:

– Fique com o troco.

– Obrigado, patrão. Quando o senhor vai embora?

– Na segunda, bem cedo.

– Pegue aí meu cartão – o sorriso compete até mesmo com o farto sol daquela hora: – Se precisar é só ligar, de dia ou de noite…

– Valeu.

– Ah, e aceite um presentinho – o taxista bota uma caixa de fósforos na mão do cliente: – Cortesia de um verdadeiro fã, com as boas-vindas da cidade.

O roqueiro logo imagina do que se trata. Agradece, salta do veículo, ajeita a cabeleira e, sem óculos escuros ou falso bigode, caminha até o portão, pisando daquele jeito esquisito. Nota que as folhas de araucária caídas na calçada precisam ser recolhidas, que a campainha foi arrancada, que a grama do quintal precisa ser aparada, que as plantas do canteiro de flores que circunda as paredes externas da edificação estão mortas, que a casa toda está caindo aos pedaços, precisando urgentemente de uma reforma.

Bate palmas, chama o dono.

O homem que abre a porta e vem em sua direção parece não uma caricatura, mas o avesso de si mesmo: veste uma camisa laranja desbeiçada, com a inscrição “Psicotecnia”, enfiada num moletom preto com listras brancas nas costuras laterais, e, para completar o mal ajambrado figurino, calça um horroroso tênis azul anil fosforescente, que produz um chiado irritante toda vez que toca o chão.

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