Resenha: romance tem técnica de sobra, mas perde em verossimilhança

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Por Raimundo Neto *

“Nem toda filosofia é literatura, nem toda literatura tem fundamento filosófico.” Pág. 61

Ao receber Que mistério tem Clarice?, romance recém-lançado de Sérgio Abranches, enxerguei Clarice Lispector na capa. Um borrão pensativo e triste, exausto. Um pensamento rápido, desses que estalam. Estalo de porta que abre devagar, e logo se fecha, intimidada. A ideia voltou a guarda-se rapidamente. Mas, ao iniciar a leitura, e em muitas páginas seguintes, Clarice veio-me à consciência. O câncer, a escrita, as reflexões filosóficas, dois filhos, as afirmações e questionamentos existencialistas, a forma minimalista e delicada com que enxerga o mundo, o limite frágil entre vida vivida e ficção. Com o correr das páginas, Clarice, a Lispector, afastou-se definitivamente, e Clarice, a de Abranches, chegou, tão interessante e arrebatadora quanto a Lispector.

Clarice descobre que tem poucos dias de vida, e então se segue um derramar de reflexões filosóficas sobre morte/vida. Há uma voz que narra todo o desenrolar da calma resignada de Clarice. E diálogos intensos. A voz que narra conta tudo. Os diálogos expõem ideias que alimentam um tratado sobre questões importantes do viver e do morrer. Mas todas as vozes são maduras, pelas reflexões expostas, e firmes, pelo manejo da técnica do autor.

O narrador observa todos os atos mínimos da vida de Clarice. Todos os detalhes são observados em sua máxima execução, porque as ideias de Clarice abarcam o mundo, e também em sua mínima execução, já que tudo merece ser pensando e visto, por dentro e por fora; Clarice cata todos os detalhes da sua vida, como o presente, a única parte da vida que ainda tem em mãos, visto que o futuro tem dias contados.

A filosofia é um bálsamo, e não há divindade capaz de salvar o corpo, embora as ideias continuem. E Clarice, sensível, entende os detalhes do mundo e seu Agora, que a morte espreita ainda distante, e sempre presente. A morte observa serena a aceitação do existencialismo literário de Clarice, e compreende que nunca é hora de partir para ninguém.

Os personagens são sensíveis a reflexões sobre o morrer, e dão sentido a atos comuns do cotidiano. As reflexões dos filhos explanam as maneiras que a vida pode (ou deve) ser vivida: o mundo nos passos, na escrita-fotografia que as viagens de Jorge e Marina proporcionam.

A filha escreve sobre lugares e pessoas, atribui significados em lugares diversos. Todas as ideias sobre a vida são agigantadas pelo olhar da filha; o filho fotografa experiências e reflete sobre elas, reflete-se nelas. É assim que Clarice e os filhos aproximam-se e a arte os ajuda a significar tudo, inclusive a morte da própria mãe. O medo não destroça, ele é um pedaço do que já se fragmentara há tempos e torna-se um componente importante da relação.

O passado vem à tona, detalhes que vão molhando as lembranças com a calma do orvalhar em noite fria: Talvez ela não queira entender tudo o que se perde; Clarice está aberta ao desconhecido. Não entendo que exista medo na personagem que tem dias contados, apenas naqueles que precisarão viver com a ausência daquela. A morte abre os olhos, apressa os passos, mas Clarice, ao contrário, não diminui o ritmo, pelo menos não o ritmo das ideias.

O passado é uma costura-fantasma: nada está mais ali, e ainda assim alimenta o que não se tem em mãos. Como é possível alimentar um sentido futuro com o que se viveu há muitos anos? Talvez só isso seja mesmo possível. Muitos filósofos e escritores são citados, lembrados, servem de referência para as ideias do narrador e dos personagens e seus diálogos.

Dentre alguns citados está Akira Kurosawa. A referência é sobre o filme “Rashomon, às Portas do Inferno” (1951), ao tratar de perspectivas diferentes para uma mesma ação, os modos de se vestir a verdade com perspectivas diferentes, quando se espera estar desnudando-a.

Mas o filme de Kurosawa que me veio à cabeça foi Viver (‘Ikiry’), 1952: um funcionário público segue uma vida arrastada-automática ocupando um cargo vazio de significados, sem férias há 30 anos, recebe a notícia de que tem poucos meses de vida (um câncer), o que desencadeia uma consciência do fim da vida que leva a repensar tudo o que resta, o que foi feito, e como recomeçar até o fim. Não sei se houve intenção do autor quando Clarice vive tal experiência, e torna-se assim um motivo do livro. Mas está lá em Akira Kurosawa.

O livro é um romance-ensaio sobre reflexões suscitadas no morrer. Os diálogos são extensões da filosofia dos personagens, ou do autor, ou do narrador. É inegável o manejo técnico de Sérgio Abranches. Mas a impressão é que o livro sustenta-se numa técnica calculada e firme de ensaio filosófico que foi aos poucos costurado para organizar-se em romance, o que torna a leitura exaustiva.

Os diálogos são extensas discussões filosóficas e literárias sobre a vida ao redor, sobre o mundo que não cessa, e a vida que escapa. Os diálogos-ensaio são simulações cansativas, sem verossimilhança, extremamente técnicas e pouco afetivas na intenção de sugerir questionamentos profundos.

Que mistério tem Clarice? é uma ficção costurada dentro de um ensaio existencialista a respeito do mundo, e de tudo que nele existe, estejamos mortos ou vivos.

A escrita de Abranches é de uma sensibilidade extremamente técnica, o que para a crítica literária extremamente especializada talvez baste. A forma com esmiúça o que chamo de atos mínimos é prática de um escritor preparado. A mistura de ensaio, ou tratado, correndo dentro de um romance exige experiência e maturidade literária; isso Abranches tem de sobra.

O autor constrói trechos singelos, mas não consegui mergulhar até o fundo. Vi o dia claro, colorido, ainda na superfície. Isso não significa que o livro seja “ruim”, se for para polarizar. Vale a leitura. No entanto, nem tudo o que vale causa arrepios.

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Que mistério tem Clarice?, de Sérgio Abranches (Ed. Biblioteca Azul, 310 págs.)

Avaliação: regular

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Raimundo Neto é escritor, crítico e colaborador da São Paulo Review