Conto: Uma fuga para o inferno

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Por  Lucas Feat *

Primeiro ela dá a bunda, depois enfia uma arma na cara dele e pergunta se era assim mesmo que ele gostaria que sua mãe o visse pela última vez: braços e pernas colados na cadeira e uma silver tape fixada nos membros, tanto inferiores quanto superiores.

A pergunta que ele faz neste exato momento é se isso, a fita colada por ela com vigor excessivo, vai realmente arrancar os pelos de seu braço.

“Só há uma coisa que conta, se vingar, e se vingar da maneira mais completa possível”, diz ela, provavelmente parafraseando um livro que adora.

Fixado na cadeira, o homem que nela está sentado parece estar suando como um porco pronto para o abate de natal, enquanto um bocejo involuntário salta do céu da boca, lentamente, constrangendo-o, mesmo na ânsia de tentar contê-lo.

Ela, a mulher que segura forte a arma, continua olhando obsessivamente para ele dizendo que os pedaços de seu cérebro espatifado em cores dégradés de vermelho lambendo as paredes e o assoalho de madeira trabalhada, farão sua mãe entrar definitivamente em estado de choque. Imagine sua mãe te vendo assim.

“Autodestruição é autoconhecimento”, pondera ele, talvez disperso em outra coisa.

O cano do revólver dela faz cosquinhas no céu de sua boca, porém não é nada engraçado. Ninguém consegue dar risadas em momentos como este.

O homem sentado imóvel na cadeira passa a língua entre os dentes e se dá conta de que precisa escovar os dentes mais uma vez hoje.

Entre os incisivos, entre os caninos e entre os sisos de raízes tortas que ainda insistem em abrir caminho pela gengiva há um friso vermelho de sangue que ela arromba numa coronhada violentamente forte e que termina por espocar numa bolha entre as sílabas de um palavrão abafado.

Um estalo cru e impiedoso no choque entre o cálcio e o metal é perceptível e reverbera pelo quarto ou somente nas têmporas dele, revelando bruscamente a intensidade de uma atmosfera lúgubre que faz calar os palavrões abafados. Quando ele olha para o espelho percebe que ela está meio curvada para atiçar o revólver em sua boca mais uma vez; ele pensa em dizer baixinho pra ela parar com aquilo, mas permanece calado.

Ela assopra a fumaça de um cigarro Hell’s na cara dele por prazer. O homem sentado na cadeira treme e seu coração dispara.

A parte frontal superior da camisa dele tem um fractal inconsciente, como gatos de Wain. Em sua boca, crostas intumescendo surgem nas linhas entre os dentes e um corte transversal rasga suas gengivas. A expressão, melada de um sangue quente quase totalmente negro escorrendo dos lábios até a altura do peito, não parece surpresa. A camisa manchada e o suor pregando. Um fio de baba desce pela boca e cola-se à arma enquanto ele se debate, revira-se de um lado para o outro como pode. E é então que ri. Olha para o espelho apontado para os movimentos dela e agora relembra uma espécie de impasse mexicano – o revólver dela versus seu olhar penetrante, sua risada estridente e metálica se amplificando pouco a pouco, tornando-se cada vez mais aguda e inerente. Ele ri como nunca em toda sua existência. Gargalha como se estivesse participando de um dos momentos mais engraçados da história da comédia.

“Os cães estão rindo de você” – ele diz, ainda rindo.

Ele detecta que a calcinha dela está do avesso. Parece achada em alguma lata de lixo próximo a uma clínica médica, amarrada com fita isolante e embaixo tem algo meio sanguíneo ou parece ser, daquele ponto de vista, uma secreção amarelada de alguma coisa pegajosa já ressecada, bem no meio. A alça de elástico da calcinha da mulher que segura um revólver mais pesado do que ela, associa ele, e que antes possuía vigor suficiente para ela ficar se pesando no banheiro dia e noite em frente ao espelho se autodepreciando, imagina ele, agora está frouxa e relaxada como se tivesse acabada de ser rasgada antes de um estupro coletivo.

“Não encare isso como uma fantasia. Você vai morrer de verdade”, diz ela. Uma câimbra progressiva sobe pelas pernas dele porque seus pés estão molhados, ele mexe os dedos e sente a meia suja grudar na palmilha. Ele lembra que os alemães perderam a batalha de Stalingrado, em 1943, por causa do frio. Perderam calor e perderam sangue. Perderam a batalha como ele. Perderam a guerra inteira.

Em cada célula da língua, especialmente nas papilas próximas à cavidade bucal, onde há uma sensibilidade maior para alimentos azedos e ácidos, é possível sentir o gosto substancialmente metálico da pólvora se diluindo em saliva. A ferrugem do sangue. O ácido do cuspe tentando sair quando se está com medo. Ele engole o que pode enquanto tenta buscar oxigênio. A pior sensação do mundo é sentir falta da respiração. Seu sangue que há pouco explodia para fora retornando de onde veio.  O pior gosto do mundo é gosto do sangue.

Parte 2

É impossível não feder com o ar condicionado quebrado, as pesadas janelas fechadas e as cortinas de tricoline mortas, sem vida. As mãos tremem mesmo atadas com silver tape. Ele tenta rasgá-las usando toda a energia que ainda tem; procura rompê-la aos solavancos, mas a intensidade parece não suficientemente proporcional à força aplicada sobre ela, todavia, ele sente uma leve deformação elástica na silver tape que gruda e desgruda em lances rápidos nos pelos que se arrancam com fúria da pele suada e sangrenta, enquanto o sal perpassa seus lábios secos.

A mulher acende outro cigarro e corta seu rosto longitudinalmente com os olhos e encaixa agora a ponta da arma bem no meio de sua cabeça. Ele imagina os ossos pneumáticos do crânio se espatifando como uma vasilha de cristal.

“Você não encontrará este espetáculo em nenhuma sala de cinema, é teatro da mente até o fim, baby, até a porra do fim!”, ela reproduz a cena.

Ela gargalha forte, enquanto força com ímpeto a silver tape prata, tão forte que é capaz de colar um tênis de skatista. Luta com todas as forças para se soltar enquanto ela se distrai um pouco fechando os olhos e balançando os ombros. Ele continua a fingir que ri com ela enquanto seus braços sentem grãos de açúcar subindo pelas mãos, por dentro. Ele sente que vai desmaiar ou vomitar.

Ela ri mais ainda quando aponta o revólver pro seu pau. Engraçado, há poucos minutos ela estava quase chorando. Mulheres. Depois acham esquisito quando dizemos que é impossível entendê-las. Ele contrai as coxas batendo os joelhos ao sentir o desenho da arma encarando o mascote ensacado na cueca. Tenta se soltar dando solavancos, repuxando os braços, balançando as mãos, mexendo os dedos, elevando a cabeça de um lado para o outro como um retardado, maneando a cabeça, batendo os calcanhares, até sentir que a fita colada nos braços é como uma teia de aranha resistente de cola e plástico, uma teia grudenta que aos poucos vai cedendo e esticando em processo de deterioração progressiva. Seu pau parece tão murcho quanto um balão de final de festa.

Ele trepou com ela porque foi o primeiro desconhecido que ela encontrou por aí. Agora ela quer matá-lo porque lembrou que o pai dela trepava ela daquele jeito. Pode-se imaginar o que se passa na cabeça de dela? Eu sei o que você faria se pudesse mudar algo no mundo. Você sabe o que ela faria? Ela provavelmente está fazendo agora.

A lâmpada que ilumina o quarto repleto de fracas manchas de luz da rua que invadem as frestas e se debruçam preguiçosamente sobre os móveis começa a falhar. Pisca diversas vezes, mas não mais claro que o relâmpago que corta um céu tenebroso de nuvens de chuva e que entra pelo vacilo magro da cortina e lambe em milésimos de segundos a parede do outro lado do quarto. Um relâmpago rasga o céu e um barulho estrondoso rompe o silêncio logo a seguir. O barulho, é o ar que estoura com a pressão. Ele lembra que quando era criança aprendeu que se você contar os segundos do clarão de um relâmpago até o momento do estrondo de um trovão, você define há quantos metros o raio caiu de você.

De repente, com o descuido, ela se assusta e ele levanta da cadeira, desabando em cima do braço dela, que em um impulso atira para cima, fazendo partir uma ampola de vidro. O bulbo da lâmpada se espatifa numa rajada de segundos e os pedacinhos minúsculos e superfinos, quase imperceptíveis, caem sobre aqueles rostos em alta temperatura, queimando a pele e ardendo a superfície; parecem rasgar os ombros e a cabeça, uma mistura nojenta de sangue, sebo, cabelo e suor e vidro. Eles não enxergam nada. Está escuro e com cheiro de mofo e pêlo torrado. Ela pisca várias vezes e detecta que os cacos de vidro da lâmpada entraram em seus olhos, porque cada vez que força as pálpebras é como se alguém riscasse o globo ocular com a ponta de uma agulha. Os olhos dele pegam fogo. A chuva cai torrencialmente lá fora e os pingos de chuva invadem as frestas de vidro da janela. Cada um se debate como pode. Involuntariamente, ele se joga para o lado tentando escapar da própria pele, mas ele acaba se deparando com o piso de madeira que se choca violentamente no lado direito de seu corpo antes que o rosto se detenha contra o piso frio. Bufando como um porco e sentindo a respiração mais forte na caixa torácica, devido à cabeça colada ao peito, ele consegue romper o invólucro das mãos. A cadeira rola consigo, ele rala os joelhos e os cotovelos e se debate com os pés, buscando ajuda com as mãos para poder se emancipar completamente.

Desnorteada pela cegueira, e em meio à sua própria escuridão interior, ela atira no ombro dele: é como se um pedaço de si saísse voando. A dor excruciante de uma bala raspando o couro parece pior do que uma flecha envenenada sendo lançada veloz contra o peito, sugando o sangue e o amor que poderia sentir. Ele grita de dor profunda e o sangue quente jorra como poucas pessoas já viram de verdade, ao vivo. Ela atira cega dentro do quarto como numa película de faroeste. Poucas são as pessoas que já viram sangue voando alto, de um tiro à queima roupa. Ela balbucia coisas incompreensíveis e depois chora fininho, esfregando os olhos e piorando sua situação. Mesmo com o farol de luz amarelada da rua que entra sem volume dá pra ver suas nuances. As lágrimas dela e o sangue que escorre se confrontam com o escasso facho de luz branca que vem da janela e é uma moldura para ele. Talvez não seja nada disso.

Quando ele chega perto dela, um recorte violento em seu rosto é desferido. Ela agora chora calada, como se tentasse ignorar as próprias lágrimas que descem do rosto e afirma com voz firme e séria: “A vingança é o maior prazer que um ser humano normal pode experimentar depois do orgasmo”, e atira em sua direção, mas o tiro acerta a janela.

“Os malucos, os loucos, os desavisados, pelo menos eles têm a solidão. São livres para fazer o que quiserem. Ninguém se importa com eles.”

Ele a xinga de vadia, puta, arrombada, escrota e a manda ficar de quatro.

Fazia tempo que ele não segurava um revólver. É mais pesado do que imaginava. Batidas na porta podem ser ouvidas agora, devem ser os tiras. O barulho só aumenta. Gritos de ordem entram pela porta como as luzes.

Enquanto ela estava cega por causa da lâmpada, ele pegou uma arma no chão que estava perto da porta, cochilando por ali, indiferente.

O barulho faz os cães latirem mais forte enquanto os dois apontam as armas um para o outro.

Em poucos segundos seu cu voará pelos ares.

*

Lucas Feat nasceu em Brasília em 1986. Trabalhou em diversas áreas da comunicação. Escreveu textos para veículos como Jornal Satélite, Cronópios e blog da Cosac Naify. Em 2012, editou uma revista literária para a 1ª Bienal do Livro e da Leitura de Brasília. Atualmente escreve a novela “Sertanejo Sangrento”

Ilustração: Thiago Fagundes

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