*Por Lorraine Ramos Assis*

No dia em que não fui (Editora Patuá), romance de Andressa Arce, tece um mosaico sensível do feminino e do luto entre duas meias irmãs.

Por mais que possa ser interpretada a princípio como uma novela pelo leitor dado à extensão das páginas, a prosa de Andressa se caracteriza como um romance, estabelecendo a narração principal feita pela irmã mais nova ao decorrer de toda a história: por mais que haja atravessamentos de outras narrativas das demais personagens acopladas a esse núcleo principal, como a menção da tia de Alice, adoentada, entre o sucesso e o fracasso e a construção de identidade da mais nova, ainda é uma escrita linear, se desenvolvendo desde a infância de Alice até seus anos na adolescência, para não dizer começo da vida adulta.

Parece, ao meu ver, uma possibilidade também de encarar o livro da autora como um “romance-novela” pela ênfase no corte na vida da personagem, vivenciado com intensidade. Ora, é assim que Alice demonstra ao leitor, quase que como testemunha de seus temores, receios, anseios e segredos. Tudo é intenso para a mais nova.

Escrito em primeira pessoa, Alice nos conta – como também não nos conta, deixando o ambíguo ser essa fenda que sugere o título – muita coisa sobre Liana, mas também sua confusão sobre essa feição que conjura ora identificação, ora diferenças conforme os objetivos de vida das duas personagens vão se apresentando: A mais nova, uma perfeccionista; a mais velha, uma alma livre, desregrada e perdida. Contudo, ambas se mesclam, formando quase um duplo de uma mesma pessoa. As “meias”, metades irmãs. Quem seria essa memória perdida chamada Liana, que comenta sobre cultura adolescente, sobre música pop, sobre junkies em Christiane F e canções de Xitãozinho e Chororó com sua personalidade efusiva? Não sabemos, ao menos não ao todo.

Outra menção pop, “As virgens suicidas”, é citada na obra, que podemos fazer um paralelo entre o feminino, o luto e a solidão. A depressão tomada por ambas as irmãs não se igualam, mas são dialógicas, com suas próprias orientações, histórias. Em ambas as narrativas, seja das irmãs Lisbon ou de Liana e Alice, é referenciado o desenvolvimento da mulher, da maturação, das expectativas e conceitos como feminilidade: o primeiro beijo, o sexo, o pertencimento e despertencimento. Um vazio insuportavelmente cheio.

Ambas estão na borda da linha, tentando sobreviver em feições borradas de sua árvore genealógica.

Mesclando gêneros como o epistolar, alguns elementos do gênero novela, mas também do romance, Arce é uma experimentadora de instrumentos, de estilos narrativos que contribuem para o luto de Alice, de seu pai, do namorado e de outras personagens, mas principalmente desse rasgo temporal, traumático da mais nova que tenta refletir sobre um patrimônio deixado por Liana: Suzies, fotos, fins de semanas e um pai calado. Um pai fragmentado.

Como Alice reflete: “Alguns estragos não são suscetíveis de reparação”, e nisso reside o mérito de Andressa em sua estreia.

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Lorraine Ramos Assis é escritora e crítica; autora de O duplo refletido (Folhas de Relva Edições)

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