É com tristeza que a São Paulo Review continua a série colaborativa, entre mais de 30 escritores nacionais bastante conhecidos do público, com homenagens às crianças assassinadas em tiroteios nas comunidades cariocas.

Cada autor escreve sobre uma das crianças vítimas da barbárie.

Asseguramos a qualidade do teor literário dos trabalhos e assim gritamos bem alto com a arma que nos cabe, a da palavra, contra a violência a que estamos vivendo.

 

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Silêncio sombrio

Quando eu era criança, imaginava que a morte era silenciosa. Sabia do avô de meu amigo que tinha morrido ao dormir, sem sentir nada, nem coração parar de bater, nem pulmão agonizar e nem estômago doer. Então a morte, a passagem da vida desta para melhor, como minha mãe disse certa vez, era isso: fechar os olhos e simplesmente não abrir mais. Um ato ordinário e indolor e eu não entendia as imagens que vi na televisão de um enterro onde todo mundo se descabelava e havia gritos de misericódia e de justiça. Pensei que talvez a morte fosse uma dormida eterna e que as pessoas faziam muito drama sobre um ato muito tranquilo. Puf, fechar os olhos e dormir para sempre.

Mas, na adolescência, vi um colega de escola sendo esfaqueado próximo à nossa escola. De trás da moita, eu e meu amigo, fugidos da abordagem rapidamente. O rapaz, magro e alto, urrou enquanto o sangue espirrou, pintando o uniforme branco. Meu amigo e eu corremos da moita e passamos gritando socorro.

Eu passei mais de um mês sem tirar a imagem de meu colega esfaqueado. Me sentia péssimo por ter corrido, me chamava de covarde o tempo inteiro.Meu colega morreu e eu era tão covarde, que não consegui ir ao seu enterro. Durante o depoimento que prestei, chorei muito, mas o delegado foi legal comigo, pediu para trazerem-me água com açúcar e disse para eu me acalmar e falar porque ele queria me ouvir direitinho.

Depois, ele me agradeceu pelo que falei e me disse para eu não me preocupar que ele iria pegar quem fizera tamanha barbaridade com meu colega. Eu o agradeci e fiquei muito agradecido por ele ter me ouvido tão pacientemente. Nunca mais a polícia me pertubou, nem para reconhecer o cara, se é que pegaram-no.

A partir deste momento, passei a ver a morte silenciosa não só como uma passagem indolor e tranquila, mas como também necessária a qualquer cidadão que anda de acordo com as regras impostas pela sociedade. E meu lado mais rock and roll achou a morte silenciosa poética, solene e abençoada.

Quando adulto, poucas coisas eram mais relaxantes e agradáveis que uma cerveja e um jornal ligado, deixando-me indignado e consolado por saber de outros tão injuriados quanto eu. Mas o relaxamento dado pelo noticiário exagerado, recheado de opiniões jornalísticas fáceis e compreensíveis, tornou-se uma tortura.

Quando a pele se rasga bruscamente, invadida por um ferro que quebra a resistência do ar a 200 metros por segundo, não há célula nervosa que dê conta de avisar ao cérebro sobre a necessidade de sentir dor para defender o corpo. Ou de fugir rapidamente para longe do que está violando a integridade do tecido celular.

Nestes casos, não há diafragma que dê conta de uma descida imediata a fim de puxar mais ar e fazer o cidadão ou cidadã ter o direito ao último suspiro antes dos derradeiros milésimos de sol a serem vistos. Os olhos fecham-se e o material de carne humana tomba no chão ao sabor da força da gravidade.

O ser outrora animado torna-se uma massa de células ao molho de sangue. Tudo isso por um pedaço de ferro disparado sabe-se de onde.

Vi isso na TV, quando um garoto de dez anos de idade, que brincava, foi morto por um projétil do Estado que ele sequer ouviu disparar. Eduardo tombou em silêncio, mas o grito de sua mãe ecoou pelo noticiário e chegou até mim, que fiquei estatelado, em silêncio. Depois foi a vez do menino Arthur, que nem sabia ainda gritar.

Meu amigo tinha tido a chance de correr, mas essas crianças não tiveram qualquer chance. Estabacaram-se ali, onde estavam, numa morte sem qualquer barulho além do impacto no asfalto. Foi quando descobri que morrer silenciosamente desta forma era sombrio e macabro. Que não havia qualquer beleza neste silêncio e que, mais ainda, não havia beleza na morte.Talvez a morte chamada de bem morrida, a que chega no sono, não seja nem feia nem bonita, seja apenas uma passagem indolor. Incolor. Irremediável.

E que beleza mesmo só no grito, no grito da gargalhada, no grito da descoberta de uma criança, no grito da brincadeira, do estravazamento de poesia humana. A beleza está no sorriso de cada criança, porque dali reflete-se toda a esperança de uma sociedade.

E cada vez que uma criança soluciona um enigma deste universo, a espécie evolui. Só assim. Nunca no silêncio.

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Thiago Mourão é escritor, autor de Java Jota

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