Por Eltânia André *

A fumaça em espiral circundava as diversas imagens que surgiam fragmentadas e monótonas. Eu que nunca gostei daquele aroma, quando em vigília, questionei-me num sem-som: este é o sétimo sonho de Rawet? O senhor chegou por trás, sentou-se na cadeira de balanço e ali ficou. Projetava pelo janelão aberto seu vago olhar. Mapeei a figura elegante e imponente, não questionei o motivo de ele estar ali ao meu lado. Senti-me calmo ao reconhecê-lo naquela barba branca (como da foto que vi pendurada num quadro, certo dia), mas sabia que ao acordar tentaria construir um roteiro, dar sentido sequencial e lógico para o que não compreendia. Enquanto isso, Freud foi tomado por uma tosse seca, divagando nos intervalos entre o que o atraía pela janela e um pigarrear rascante: pena não ter conhecido esse jovem polonês. Já sabia que ele insistia em qualquer coisa urgente como a elação entre os objetos espalhados pelos sonhos. Noutro momento, Sigmund flutuava no ar junto com a fumaça que se espiralava acompanhada de sua tosse cada vez mais intensa. A onça lambia os seus pés e a criança de sete anos rasgava as folhas do livro e entregava a alguém. Eu não queria desvendar enigmas, pois tinha consciência de que sonhava. Desejava apenas desfrutar com ele e com o outro homem de cavanhaque branco (que surgiria na sequência), o gozo do único charuto. A voz do homem ecoava: temos algo em comum, além dessa onça e desse menino – dizia olhando para os pés. Sabia que ele não se referia a mim, mas ao indivíduo de cavanhaque branco. Não havia dúvidas: eram duas barbas brancas condensadas, duas imagens e o tabaco que nos servia. De súbito o animal havia se transformado num rato, e pela janela eu vi a criança de mãos dadas com o terceiro homem de barba branca, um velho arqueado; caminhavam ao redor do moinho d’água; próximos a eles outras pessoas também subiam a montanha, mas algumas não saíam do lugar. O homem desenlaçou a mão da criança e desapareceu numa nuvem escura e a criança prosseguiu com o grupo. Eu estava seguro de que não queria desvendar enigmas, apenas fumar o charuto. Enquanto Freud questionava: para aonde vai o menino errante? Ele constrói e escala o edifício da língua desconhecida. A onça retornou e lambia um prato de sopa. Mesmo nessa sequência do sonho (seria o quinto?), lembrei-me de uma velha história de maçãs, de Gringuinho, de Judith: mundo mudo, falta de comunicação, estranhamento, o aspecto do repolho e algo obscuro como o fim. Novo cenário, já não sabia a contagem: sétimo, sexto, quinto, quarto, terceiro, segundo ou primeiro? Há ordem no caos? Espalhadas pela sala, várias máquinas de escrever e o barulho intenso das teclas como num frenesi de palavras, períodos, parágrafos, reticências, exclamações e muitas…  muitas interrogações para o mesmo espanto.

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Eltânia André é escritora

 

 

 

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