* Por Vanessa Maranha *

 Quando acabou a lunação, Cecília se reiniciou noutro ciclo. Lavar pratos, trocar lençóis, regar plantas, sovar e refrescar almofadas, espalhando para bem longe o pó, jogando para o passado o que era afinal passado, gasto, roto. Pintar as paredes de outros tons, mais vivazes, muitas cores, tornar a casa arco-íris.

Mas havia a memória, essa coisa implacável. Mas havia o cheiro de Flávio, acácia e lima verde apanhadas do pé, por todos os cantos. Mas estava ali, pelos objetos, ainda pelos arredores, a sombra dele. Sua gargalhada alegre e os cacos da escultura que, na outra lua, ela espatifara, mirando-o.

Ficar de bem, como nos anúncios das revistas, rostos saudáveis, sorrisos brancos, nenhuma imperfeição, coisa árdua. A coração disparado, ela iniciou então a faxina. Eu te odeio, contando para si mesma, como quem se auto absolve, como quem repete qualquer coisa até acreditá-la.

Enfronhou-se em si tentando tirar tudo quanto de Flávio houvesse impregnado na pele, nas marcas, rugas de seu rosto. E por alguns dias vivenciou todos os ápices de seu furor anti marido, mas não sem um quê de loucura, cerzida de ressentimento. É que o telefone não tocara uma única vez sequer desde que Cecília quase fez desabar em estrondo a porta que o lançou definitivamente fora.

Só pelo triunfo de renegá-lo. Ao menos o gosto de gritar-lhe que não, nunca mais. Não o queria mais. Como e com que ardência Cecília precisava de Flávio para dizê-lo a cada nova voluta lunar. Exatamente na mesma sinergia dos que se amam; na idêntica simbiose daqueles que se odeiam.

Fora desse cárcere do querer não querendo, do estar sem ser, ela não se postava, era quase manca, capenga. Visceral, nela, isso de ir e voltar, de dizer desdizendo. Mas Flávio já ia ao largo, seguindo longe.

No exato instante em que o tum-ti-tum deu trégua aos ouvidos para, no segundo seguinte, recomeçar ensurdecedor, ele cumpriu o ritual do limão com sal e virou até a gota restante o copo de tequila. Uns jasmins negros, raros, lá fora, flores de anteontem.

Suor escorrendo pelas têmporas, vermelhidão nas faces, aquela água ardendo por dentro e o espanto crescendo, redemoinhado, olhos muito vivos diante das cores que já se embaralhavam à sua frente. Do que você está falando?

De um homem abastecido, desatinado, no fervo, na caldeira, panela de pressão tuim-tuim-tuim na cabeça e então explosão. Fez-se ali um vermelho absoluto, total. E Flávio acelerou-se mais ainda ao encontrar, adiante, precária, chumbada, batom borrado, Cecília, numa poltrona branca em meio àquela festa.

Não havia o que dizer. Portanto não disse. Tampouco o que sentir, que não um calorão infernal, um chamamento de rasas platitudes a berrar pela repetição copo-limão-tequila-sal e uma renovada sensação de que sofríveis e imprecisas estavam aquela sua noite e aquela sua vida, que nem palavra podia mais, afogadas demais.

Cecília à frente, num êxtase embotado sobre a vastidão do branco, ela branca, ela tênue. Erguessem uma parede entre os dois e a barreira não se mostraria menos intransponível. Acariações diante do espelho. Assim, novo copo logo chegava, vertido num gosto que trazia qualquer coisa boa, no longínquo e dissipado daquilo que tem milho e carne. A bebida não o dissolvia. Era ele quem se desmanchava, em pedacinhos, porque mais não havia.

Nem o frescor do citrino em Cecília. Por iguais que fossem, sua solidão era vasta e pontiaguda. Não se aproximassem não. Mais não conseguia de si mesmo, que não fosse um desejo pelo inominável, sem saber dar designação às coisas, discerni-las de si mesmo, em si. “Mas será que eu ainda posso?”

E mais um copo aplacava momentaneamente uma sede que vinha de séculos, mas que ali se matava.

*

(o conto faz parte da série Etílicas, de Estigma, livro inédito da autora)

*

Vanessa Maranha participou de várias antologias de contos, entre elas +30 mulheres que estão fazendo a nova literatura brasileira (Record, 2007), organizada por Luiz Ruffato. Em 2001, foi finalista ao Prêmio Guimarães Rosa da Radio France Internationale. Em 2012 venceu o Prêmio Off Flip, no ano seguinte, o Prêmio UFES de Literatura (Universidade Federal do Espírito Santo) com o livro de contos Quando não somos mais (EDUFES, 2014). Acaba de lançar o livro de contos Pássara, pela Editora Patuá

Tags: