* Por Lourenço Cazarré *

Nunca. Não tem abertura. Eu me calo. Boca aferrolhada. Vá pensando. Coronel gosta de falar. Falar não tem custo, além do cuspo. Coronel ama o som do próprio gorgomilo. Voz bonita. Se pregasse sermão, convertia. Porém seu corpo é habitado por Satã. Povo fala que olho azul esconde malvadeza maligna. Concordo, pois assim é. Conversa do coronel visa me engazopar. Só um nome. Sei. Depois vossa senhoria me sangra. Enquanto não pio, vivo. Mas pode ser que o oficial me apague mesmo assim. Quem respira sempre pode perder o alento. Coisas que se dão. O pisar num prego enferrujado. Coronel domina a conversação. Não se gasta para encadear a palavragem. Fala sem se deter nas encruzilhadas. Fabrica frases impressionantes. Aprecio o povo dessa laia. No vácuo da mente é onde ficam as ideias. Alcanço isso, mas não tenho com quem filosofar. Não disponho de auditório, além de cabras. Quem me fita não me percebe. Quem me observa o que vê? Não vê nada. Viro bocó quando me miram. Deixo de pulsar. Desapareço de mim. Quase me desfaço. Uns parecem o que são. Sou o que pareço? Um traste, diz o coronel. Não se afasta da verdade. Sou ossada ao sol. Coronel tem olho bem azul para conhecer melhor os indivíduos. É mirada que adentra, atravessa e retorna sabedora. Por isso me compreendeu antes mesmo do começo. Sabe verrumar até espírito de pagão. Quer um nome só? Sei. Mas aquela voz que me comandou não mais tem nome. Mastiguei seu nome com macaxeira. É nome que não me volta nem com banda tocando. Agora, existiu de fato uma voz que me ordenou que tomasse parte na artilharia. A voz que é como minha dona. Era só para guarnecer um fuzileiro. Podia renegar? Segui o homem. Mas bispei que ele não tinha instinto de bicho que come carne. Cilada naquele cotovelo de rio? Não apreciei, porém nem palpitei. Campo de fogo não era próprio. Dizer isso ao matador seria desperdício. Eu estava ali obrigado. Se me mandassem aos cafundós, iria com gosto. Meu braço tremeu? De leve, sim. Havia um bucho redondo de senhora. Isso não estava ajustado. Era matar um másculo. Nem era matar, no rigor. Era para disparar só na falha do atirador principal. Caso ele não arrombasse de primeira o magriço de lunetas. Não tinha mulher no trato. Para piorar, embuchada. Pois é. Não tem fuga com tornozelo retorcido. Pererequei. Ele podia apertar mais a esganação? Sim. Eu era merecedor. A senhora pediu clemência para comigo. Não me enforque esse pobre homem, ela disse. O doutor sujeitou seu aperto. Fungava forte da corrida e da resistência do meu gogó. Por que não me mandou desta para a outra? Ocasião existiu.

Tinha até bala no tambor. Agora, carrasco mais corajudo que eu, que sou frouxo, não tremeria. Mesmo que vista a pança inchada da madama. Essa é a verdade. Sei que o coronel está ancorado na lei. Bacharelou-se na impiedade. De certo é da linhagem dos que dormem na pontaria. Daqueles que só dedilham no momento certo de ceifar. Não é meu caso. O ventre carregado de criança deve ter pesado no meu sentimento. Olhos das senhoras se assemelham aos das cabras. Cabra prenha se conhece pelo olhar meloso, antes mesmo de aflorar a protuberância. O senhor esgalgado de óculos é uma autoridade. Veja só! Isso foi o que me comunicou o motorista arredondado. O prefeito! Um governante que me viu saltando como o Saci da perna só. Vergonha. Ele não me deu a morte porque preferiu me trazer a esta penitenciária, sabedor do que é pior para mim. Jagunço, você queria matar gente, disse ele. Pois é, a Polícia vai te libertar dessa tendência ruim.

A voz falseou desde o princípio. Poderia ter mostrado o carteado. Nem precisava informar o posto. Bastava ter dito: para seu conhecimento, o futuro defunto manda cair chuva. Não disse. Agora é sustentar. Disponho de tutano dentro dos ossos. Coronel gosta de surrar? Certamente. Porém os polícias cansam de bater em diabo pobre. É dia ou dois. Não supera isso…

Sim! Eu obedeci à voz porque não havia outro modo. Sou submisso desde o parto. Se pudesse, escolheria ficar no agreste com as cabras. Melhor. Mais cômodo. Mas a voz não me indagou, determinou. Agora, coronel quer o nome da voz. Sei. Cidade é corredor para os quintos. Isto aqui, tendo rua ladeada de casas, é município. Portanto, não é o meu terreno. O lugar que me toca é troço de terra pelada em mato sem folha. Lá não tem mulher. Vagabunda só campeia no urbano. Na mataria sedenta, o que sobra é cabra. Agora estamos atrás das grades. Vamos levar uma tunda? Sem dúvida. E eu, me garanto? É o jeito. Suporto chuvarada e soalheira. Qual é a diferença entre sol quente e chuva fria, de um lado, e rebenque, do outro?  Chuvarada e soalheira podem maltratar um dia inteiro, mas o braço que movimenta o baraço se cansa. A gana raivosa desaparece com o suadouro. Não me exibo, mas tenho lombada, coronel. Mostrei quando me pegaram com a cabrinha que morreu depois. Quem mandou ter pele de lagarto, disse a voz. Tua pelanca demora a se soltar, a voz bufava. A voz pegou o que tinha mais à mão. Uma vara tão mole que parecia de elástico. O sujeito sangra como se transpirasse. O sangue borbota pelos buraquinhos da pele. Dói? Se eu garanto que não, dirão que sofro de soberbia. Daí eu não digo. Mas não penei demasiado. Eu nem era homem feito quando me pegaram pecando daquele jeito. Você é mais alimária que gente, decretou a voz. Então desgostei daquela sentença, mas hoje concordo. Não sou bem um homem certo. Encontro-me mais aproximado dos sem-razão. E daí? Coronel sabe encadear palavrório de amedrontar. Eu mal destravo minha língua. Por desuso, a ferramenta enferrujou. Cabras não papeiam. Sei empilhar as palavras no quengo. É arrumação o tempo todo. Mas só alcanço pensamento que afunda em pouca água. Já o coronel descobre espírito de matuto. Onde terá aprendido tanto? Gosta de sobressaltar o detido. Mas comigo isso funciona? Não. Um dia é muito demorado. Do escuro que parte ao escuro que chega vai espaço demasiado. A gente pode se deitar na sombra. Basta abrir os olhos de vez em quando para contar as cabeças. É bom colocar as mãos embaixo da nuca. E assuntar. Por que aqui? Por que não em outro lugar? Ora, porque se nasce com fome. O homem é faminto também na metade inferior do corpo. As duas fomes nos amarram onde há comida. É mais fácil comer do mato. Raízes e frutas. As cabras. O senhor coronel é tinhoso. Um só nome. Sei. Digo não. Falo não. Lombo de lagarto, disse a voz. Tu não és uma besta-fera. Ou serás? Um homem é o que tu não és.

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O trecho faz parte da novela soldado amarelo, escrita a partir de uma história envolvendo Graciliano Ramos, que em 1929 sofreu uma tocaia, a tiros, em Palmeira dos Índios. Graciliano pegou à unha um dos atiradores e o entregou a polícia. Essa história está contada no livro Graciliano Ramos – Retrato fragmentado, de Ricardo Ramos, filho do escritor alagoano.

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Imagem ilustrativa: Dilúvio III, da série Bestiário, de Bruno Dunley

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