* Por Ary Quintella *

Let’s talk of graves, of worms, and epitaphs
Richard II, Shakespeare

No final da minha adolescência, no começo da vida adulta, eu costumava, quando estava em Paris, fazer peregrinação aos túmulos de escritores e compositores objeto de minha admiração. Os cemitérios da cidade são frequentados pelos turistas, que caminham entre os monumentos funerários, com um mapa nas mãos, tentando encontrar o jazigo de celebridades.

A tumba de Stendhal era para mim destino obrigatório, por ser ele então meu escritor predileto. Estudante em Londres, eu ficava acordado até de madrugada lendo seus livros, e ia à aula no dia seguinte acompanhado de seus personagens. Pensava nas intrigas amorosas, nas tramas políticas da existência de Julien Sorel e de Fabrice del Dongo, nas suas ambições, nas renomadas habilidades de estadista do Conde Mosca; tentava prever se eu me apaixonaria por uma Mathilde de La Mole, uma Gina Sanseverina ou uma Clélia Conti; lamentava o terrível destino de Beatrice Cenci. As peripécias, os diálogos, as cenas encontradas nos livros de Stendhal despertavam muito mais meu interesse do que as aulas de estatística ou os experimentos no laboratório.

Quando eu viajava a Paris, enfrentava frio, chuva, neve para andar pelo cemitério de Montmartre até o túmulo de Stendhal. Ficava parado frente a ele, refletindo com ar compenetrado, tentando talvez incorporar algo do talento do escritor, ou da intensidade que ele concedeu, em seus romances, a Julien e a Fabrice. Havia provavelmente, nisso tudo, uma forte inspiração da cena do cemitério em Hamlet. De resto, seria apropriado que assim fosse, pois Stendhal idolatrava Shakespeare e chegou a tentar, em 1802, aos 19 anos, escrever sua própria versão da tragédia do príncipe dinamarquês, transportando a ação para a Polônia.

Adulto, perdi o interesse pelo turismo funerário. Há muitos e muitos anos eu já não prestava homenagem a sepulturas de músicos ou escritores. Em julho, passando poucos dias de férias em Paris, resolvi porém revisitar o cemitério de Montmartre. Na postagem de meu blog Em Seul, sem Chateaubriand contei que, procurando mais uma vez a tumba de Stendhal, esbarrei na de Madame Récamier, amiga, amante e musa de Chateaubriand. Entre os turistas que estavam no cemitério, naquele dia de verão, um grupo de três mulheres perguntou-me, em um francês com forte sotaque balcânico, se eu conhecia a localização do túmulo de Jeanne Moreau, morta em 2017, e que eu nem sabia estar ali enterrada.

Naquela tarde, a residência final de Stendhal reapresentou-se a mim desta maneira:

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A inscrição na lápide merece ser vista em detalhe, inclusive porque é fruto da vontade do próprio autor, manifestada em ao menos duas obras auto-biográficas — Souvenirs d’égotisme, escrita em 1832, e um texto curto, avulso, de 1837:

Stendhal chamava-se, na verdade, Henri Beyle — por isso o “Arrigo” na lápide — e era notoriamente admirador da Itália, que não fora ainda unificada e era então uma península e um conceito, mas não um país. Alguns dos momentos mais felizes do escritor foram passados em Milão, que visitou pela primeira vez em 1800, aos 17 anos, e onde morou de 1814 a 1821, o que explica o “Milanese”. Stendhal desejava também que constasse de sua lápide que ele “adorara Cimarosa, Mozart e Shakespeare” — costumava aliás escrever “Shakspeare”, sem o primeiro “e”. No texto de 1837, acrescentou à lista o pintor Correggio, “le Corrège” para os franceses. Nosso escritor, como se sabe, era grande admirador das artes plásticas. No século XX, surgiu mesmo a noção de “síndrome de Stendhal” para designar a reação exacerbada, alguns dirão ridícula — tonturas, palpitações, desmaios — diante da beleza de uma obra de arte. Um de seus primeiros livros, redigido em grande parte parafraseando outros autores, intitula-se Histoire de la peinture en Italie.

O escritor deu origem também ao termo “beylisme”, que ele próprio criou em 1812, e que ficou consagrado desde pelo menos a publicação, em 1914, do livro de Léon Blum, Stendhal et le beylisme. A expressão remete aos ingredientes habituais da personalidade dos protagonistas de seus romances — e ao seu próprio ideal — de energia, individualismo, liberdade, capacidade de viver grandes paixões e busca da felicidade.

Tanto em 1832 como em 1837, Stendhal determinara que constassem em seu epitáfio os três verbos “viveu, escreveu, amou”, em italiano. Por alguma razão, seu primo, amigo, biógrafo e executor testamentário Romain Colomb inverteu a ordem, colocando “escreveu” em primeiro lugar. É por isso que lemos “scrisse, amò, visse”. Para qualquer espírito cartesiano, a presença do “viveu” no final da tríade parece ilógica. Para os fanáticos de Stendhal, soa como traição. Em 1891, o escritor nacionalista Maurice Barrès declarou, em um artigo no Figaro intitulado “Le Génie au Cimetière“, que a decisão de Colomb fora uma “manobra chocante”. “O verdadeiro beylista”, escreveu Barrès, “deve antes de mais nada respeitar as manias de Beyle”.

Em 1888, com a inauguração de um viaduto de metal que passa exatamente sobre aquele canto do cemitério, com veículos rodando por cima das tumbas, o túmulo de Stendhal ficara ensombrecido e escondido. Na primeira vez em que visitei o cemitério de Montmartre, aos 20 anos, fiquei suficientemente impressionado com a presença do viaduto — conhecido como pont Caulaincourt — sobre as sepulturas para mencionar o fato em um caderno de anotações. Em 1892, admiradores de Stendhal cotizaram-se para restaurar a sepultura, o que explica a data na lápide. A inversão na ordem dos verbos, porém, permaneceu. Em 1962, passados 120 anos da morte de Stendhal, um dos maiores especialistas de sua obra, Vittorio (ou Victor) del Litto, francês nascido na Itália, promoveu uma mudança de 150 metros na localização do túmulo, para retirá-lo do espaço sob a estrutura metálica do pont Caulaincourt. A cerimônia deu-se em 23 de março, aniversário da morte do escritor. Victor del Litto deixou-nos do acontecimento um relato. Participaram do traslado do túmulo apenas quatro pessoas: o diretor do cemitério, um comissário de polícia, del Litto e sua mulher. Foi necessário abrir a sepultura. Do cadáver de Stendhal, além de “uma poeira impalpável”, sobravam o crânio, a mandíbula e uma tíbia

Durante o enterro do meu pai, no cemitério do Caju, em 1999, um primo chamou-me de lado para “ver algo importante”. Levou-me a uma tumba vizinha ao jazigo da família. Sobre esse túmulo vizinho, haviam colocado uma caixa de metal contendo o que sobrava de meu avô, o matemático. A caixa, retirada do jazigo familiar apenas para que pudéssemos sepultar meu pai, estava aberta. Dentro, naquele dia de sol carioca, vi o crânio de meu avô, uma tíbia e as dragonas de seu uniforme militar. Era tudo o que restava do General Ary Norton de Murat Quintella.

Não terminaremos nessa nota fúnebre. Afinal, como nos ensina o poeta Jacques Prévert, em Chanson des escargots qui vont à l’enterrement,

Les histoires de cercueils
C’est triste et pas joli”

A caminho do enterro de uma folha morta, os dois caracóis enlutados partem no outono, mas só chegam na primavera, e a essa altura as folhas “sont toutes ressuscitées“. Os pobres caracóis “sont très désappointés“.

O leitor atento — ou com boa visão — terá notado em uma das fotos acima que, no dia de minha visita, havia sobre a sepultura de Stendhal um pedacinho de papel, segurado por uma pedra. Em várias das ocasiões em que vi esse túmulo, ao longo dos anos, algum admirador havia deixado um recado escrito, frequentemente em italiano.

Dessa vez, era este o bilhete:

“Para Stendhal, obrigada pelo Vermelho e o Negro, Elena”.

Tive o cuidado de não tocar no papel ou na pedrinha. Fiquei pensando na glória póstuma desse homem morto em 1842, aos 59 anos, praticamente desconhecido como escritor enquanto vivo, a não ser por uns poucos amigos literatos. Pensei na beleza de uma vida que pudera ser resumida de forma simples, com três verbos apenas, “escreveu, amou, viveu”.

Como nas vezes anteriores, apreciei a admiração que a ele devotam seus leitores italianos, justíssima, considerando o quanto ele amara a Itália e a maneira como a descrevera. Comovi-me com a simplicidade do papel, claramente arrancado de algum pequeno caderno. Tivera Elena desde o início a intenção, ao dirigir-se ao cemitério, de deixar o bilhete, ou fora esse um gesto impulsivo, inspirado por uma emoção causada pela visão do próprio túmulo? Por que Le Rouge et le Noir e não La Chartreuse de Parme? O que a leitura de Le Rouge et le Noir trouxera a Elena?

E aí, percebi que para essa última pergunta eu tinha a resposta. Os heróis stendhalianos, homens e mulheres, trazem-nos um sopro de energia, de coragem diante da adversidade e das circunstâncias, a sensação de que são seres à parte, com uma personalidade própria e atraente e a capacidade de viver intensamente. Dessa forma, Stendhal cumpre, de uma maneira que só pertence a ele, o papel de todo grande escritor: tornar a vida mais suportável, mais rica, mais empolgante para os seus leitores.

O sol estava forte. Saí do cemitério, perambulei por Montmartre, sentei-me ao ar livre em um café numa praça, tomei uma garrafa inteira de água mineral e um macchiato, fiquei vendo a vida passar. Pensei na amizade que os personagens de Stendhal têm me oferecido, ao longo dos anos, desde a adolescência. Teria bastado que ele morresse em 1812, na calamitosa campanha da Rússia de Napoleão, de que participou, para ficarmos sem suas obras e o reconforto que oferecem.

O sol começava a baixar. Mais tarde, eu iria ao teatro com amigos. Queria antes passar em uma livraria de que gosto, Les Cahiers de Colette. O tempo estava ficando curto. Paguei a água e o café, peguei um táxi e fui à livraria.

*

Ary Quintella | Diplomata. Diretor do Departamento da Ásia Central, Meridional e Oceania do Ministério das Relações Exteriores. Publica suas crônicas no blog: aryquintella.com

 

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