* Por Hugo Almeida *

Em julho de 2018 fez 40 anos da morte de Osman Lins (1924), um dos maiores escritores brasileiros de todos os tempos. A data foi lembrada em eventos em universidades do país, como a USP, no VI Colóquio Osman Lins, e a UFPE, que relançou dois livros do escritor, Do ideal e da glória e Evangelho na taba, em um só volume, Problemas inculturais brasileiros, organizado por Fábio Andrade. No ciclo Cadeira 41, da Academia Brasileira de Letras, fiz a conferência “Osman Lins, 40 anos depois, mais atual” (vídeo disponível no YouTube, link:https://www.youtube.com/watch?v=5cf0j89AO98), em que apresentei uma síntese da vida e obra do escritor pernambucano. Destaquei a palavra viva de Osman Lins presente em entrevistas e livros, como no romance A rainha dos cárceres da Grécia (Melhoramentos, 1976). Aqui, neste artigo, vou falar sobre alguns aspectos desse romance como exemplos da atualidade do escritor.

Em forma de diário, um narrador anônimo, professor de Ciências Naturais, analisa o romance inédito de sua companheira morta, Julia Marquezim Enone, também intitulado A rainha dos cárceres da Grécia. É o livro mais contundente de Osman Lins contra a injustiça – romance estético também, mas sobretudo engajado, de denúncia e combate. O escritor denuncia a injusta previdência social no Brasil, fala sobre a miséria e o desperdício, sobre os pobres em “situação idêntica à dos banidos do Éden” (a expressão é de Georg Lukács em A teoria do romance), critica a linguagem de juízes e médicos e as letras dos hinos patrióticos. Romance eloquente, mas sem renunciar ao apuro estético, nunca uma literatura ligeira, de mero protesto.

Camadas naturais do tecido narrativo osmaniano: mesmo falando da riqueza no lixo, o narrador não deixa de abordar o problema da construção (e desconstrução, na análise da obra de Julia Enone) literária. Aquela riqueza no lixo é desperdiçada “por falta de cuidado e método”, mal que pode afetar uma obra de ficção. Ao contrário de seu estudo, no qual o narrador tenta separar no livro o que é uno, a mistura no lixo é desastrosa – palha de aço e sabão, por exemplo, põem a perder sobra de sopa. Na arquitetura do romance, a sequência de “invasões”, nas páginas seguintes, é perfeita: astronautas no espaço e, na Terra, a geada destruindo plantações de trigo e café. Depois, a notícia da criação da Imbel, que vai produzir material bélico (notícia recebida com “exultação pelo setor privado”). Um fornecedor do exército comemora: “Em Brasília, esta semana, eu disse a três generais que podem pedir até uma bomba. Nós fabricamos logo”). Logo a seguir, o narrador antecipa o aniversário de 30 anos da bomba sobre Hiroxima: “Era uma criação do nosso tempo, amante do traçado puro e avesso ao ornamento”. Na página seguinte, a enchente no Recife. Maria de França, personagem de Julia Enone, vê uma “riqueza” no rio: “é um colchão?, um colchão navegando, uma riqueza, quem sabe se não traz, com os percevejos, dinheiro na palha, enfiado?”). Na sequência das quatro páginas, aparecem os elementos naturais – a terra, o ar, a água e o fogo. O narrador não é um professor de Ciências Naturais?

Quando o narrador de A rainha… abandona a “prisão do calendário” (“A prisão ao calendário empresta a esse modo de escrita uma configuração de cárcere”, afirma Maria José Motta Viana, ao comentar Minha vida de menina, de Helena Morley, em Do sótão à vitrine) e o noticiário da imprensa, o romance cresce, perde o jeito de ensaio, fica solto, torna-se mais dinâmico, conquista a liberdade – é a vitória da ficção, da fábula sobre o real, como disse o próprio Osman Lins (Jornal do Brasil, Rio, 16.1.77).

A decifração de A rainha dos cárceres da Grécia, como de todo romance em abismo, é tarefa sem-fim. Importa, acima de tudo, buscar a articulação do texto com o momento histórico do país em que foi escrito e que retrata, ainda que traga ressonâncias gregas e contribuições de outros autores e outras culturas. O próprio mundo grego presente em A rainhanão deve ser visto como mera colagem. Há um processo de transformação, uma metamorfose, que faz o texto osmaniano afastar-se da literatura clássica grega, não apenas como ironia e contraste, como o personagem Rônfilo Rivaldo, analfabeto que fundou uma escola, o oposto de Platão, fundador da Academia, e de Aristóteles, que abriu o Liceu, ambos em Atenas. Não existe comiseração no romance (o máximo a que o narrador se permite é um “Pobre Ana”, mas se referindo à sua “luta inglória” contra o tempo), do livro estão ausentes os deuses, tão caros aos gregos. Em nenhum momento, algum personagem ou o narrador diz o refrão das peças gregas, “Ai de mim”, nem apela para o além. Sim, o romance tem elementos da literatura grega. Apenas. Hesíodo acreditava nas musas, Osman Lins e o narrador de A rainha, não.

A rainha dos cárceres da Gréciaestá mais próximo dos filósofos gregos, que defendiam a autonomia do pensamento e da ação do homem, sem a determinação do destino, de algum poder divino. Não existe nenhum vilão, o vilão tradicional, no romance (falta, para isso, um sujeito histórico constituído que lhe dê combate). O único vilão é a ordem social injusta, como lembrou José Paulo Paes em seu curso sobre Romance ministrado no Departamento de Literatura Comparada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, da USP, no primeiro semestre de 1995. Contra ela, a perversa ordem socioeconômica, é que se debate Maria de França. É contra ela que se rebela o narrador. Osman Lins parece sugerir que é o próprio país que está no labirinto, e não apenas o narrador, Julia, Maria de França, Ana e os outros personagens.

As condições de miséria da família da personagem estão bem explicitadas no romance. Miséria, repita-se, causada pela desigual distribuição de bens, como a “fartura e o desperdício” e a “riqueza” jogada fora diariamente pela burguesia que seria útil a tanta gente, com pessoas “disputando com bandos de urubus e de cachorros vadios, nas formações de lixo […], os bens aí ofertados”. O escritor disse, numa entrevista, que os que o acusavam de ser alheio aos problemas do país ficariam “decepcionados” com A rainha dos cárceres da Grécia.O romance está aí, vivo, vivíssimo, para confirmar o compromisso de Osman Lins com a questão social.

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Hugo Almeida (1952), escritor e jornalista mineiro residente em São Paulo desde 1984, é doutor em Literatura Brasileira pela USP (2005), com tese sobre A rainha dos cárceres da Grécia. Organizou o volume de ensaios Osman Lins: o sopro na argila (Nankin, 2004) e a coletânea de contos Nove, novena: variações (Olho d’Água, 2016). Com Rosângela Felício dos Santos, organizou o livro póstumo de Osman Lins Quero falar de sonhos (Hucitec, 2014). É autor de vários livros, entre eles o romance Mil corações solitários (Scipione, 1988), Prêmio Bienal Nestlé-88, que teve três edições, o infantojuvenil Viagem à Lua de canoa (Nankin, 2009), incluído no PNBE-2011, e os infantis Todo mundo é diferente (Lê, 1996) e Meu nome é Fogo (Dimensão, 2007). Seu romance inédito Vale das ameixas dialoga com a obra de Osman Lins

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