Por Samuel de Jesus *

Vai minha tristeza

E diz a ela que sem ela não pode ser

Diz-lhe numa prece

Que ela regresse

Porque eu não posso mais sofrer […]

Chega de saudade

A realidade é que sem ela

Não há paz, não há beleza

É só tristeza e a melancolia

Que não sai de mim

Não sai de mim

Não sai. [1]

Esses versos foram tiradas de um poema de Vinicius de Moraes, musicado por Tom Jobim e chamado “Chega de saudade”. Mencionamos aqui esse poema para fazer uma transição ao nosso próximo tema. Se abordamos o estudo da saudade haurindo numerosos exemplos que a mencionam, tanto no campo literário quanto no filosófico, observando ao mesmo tempo que seu sentido procedia de certa forma de uma “síntese” semântica, interrogamos também os laços que ligam a saudade à imagem, ou seja: que indícios linguísticos determinam sua presença iconográfica? Nossa intuição corrobora a ideia de que se a expressão predominante da saudade permanece antes de tudo literária, nem por isso ela é alheia a outros campos artísticos, como enfatiza José Antonio Tobias.[2]  Muito pelo contrário: basta pensarmos nos dois exemplos de pintura que vimos no começo e que se referem explicitamente à saudade.

A saudade é um sentimento particularmente pregnante nas culturas lusófonas, mas sua expressão singular não é alheia àquela, universal, que relata as turbulências e vicissitudes humanas. Atravessados por inúmeros tumultos da história, ou por aquele de uma profunda tristeza causada por um amor ou um lugar querido, perdido ou distante, todos esses temas conferem à saudade diferentes variações, fazendo dela um sentimento ao mesmo tempo particular e universal. Tobias acrescenta:

Em outra palavra, trata-se aqui de um outro fato sociológico, que abraça o mundo inteiro: o transporte da cultura portuguesa, sobretudo a inoculação de um espírito português, através da palavra e do sentimento de saudade […] De um outro lado, ela constituiu um forte impulso de união entre Portugal e Brasil; um mundo enclausurado na saudade, no mesmo tempo que nas Américas, ela deu aos brasileiros uma personalidade inconfundível, tipicamente e exclusivamente brasileira.  [TOBIAS. O mistério da saudade, p. 39-40]

Se uma das características maiores desse sentimento se concentra na tensão de perda ou de distância entre um sujeito e seu objeto, esta se aplica também ao tempo (entre diferentes temporalidades) e ao espaço, donde seu aspecto nostálgico. Se definir precisamente a saudade se revela um exercício complicado, certos sentimentos “conexos” podem entretanto nos ajudar a melhor apreciar seu valor artístico e psicológico. Em primeiro lugar, o da tristeza. De acordo com a análise de Cândida Alves Claves do Carmo, esse sentimento resultaria de um “conflito sentimental” constituído a partir de um conjunto heterogêneo de que se distinguiriam principalmente a tristeza, o desejo e a solidão.[3] Já mencionada no Leal conselheiro de dom Duarte, sua simples evocação basta para lhe trazer de volta a alegria. Lúcido quanto a sua “condição”, ele a descreve da seguinte forma:

Entre nojo e tristeza eu faço tal diferença: porque a tristeza, por qualquer parte que venha, assim embarque sempre continuadamente o coração que não dá espaço de poder em al bem pensar nem folgar, e o nojo é a tempos, assim como se vê na morte de alguns parentes e amigos, onde aquele tempo que por justa falta ou lembrança se sente, o sentimento é muito rijo […] E a saudade não descende de cada uma] destas partes, mas é um sentido do coração que vem da sensualidade e não da razão, e faz sentir às vezes os sentidos da tristeza e do nojo.[4]

Se observamos alguns exemplos iconográficos portugueses ou brasileiros, muitos deles testemunham um sentimento de tristeza inoculado de maneira bastante variada, de acordo com o espaço geográfico em que uma poiética das imagens e do imaginário pôde se desenvolver. Tomemos, por exemplo, duas fotografias que representam ambas uma “cena de gênero” musical, em que podemos discernir um espírito de saudade, como uma melodia que proporciona ao mesmo tempo tristeza e alegria. A primeira fotografia é de Pierre Verger; a segunda, de Jean Dieuzaide. Notemos que não se trata de dois fotógrafos lusófonos, mas de dois francófonos mais ou menos ligados a Portugal ou ao Brasil, cada um por motivações bem particulares. Notemos o fato de que, a partir de uma motivação comum – representar uma cena de pessoas cantando –, essas duas fotografias mostram uma divergência de ponto de vista, da qual resultam duas percepções diferentes dessa relação que une o sentimento de saudade à música: uma, próxima de um olhar “etnográfico”; a outra, mais tradicional, ou mesmo “convencional”. No entanto, uma tensão dos contrários se infiltra em ambas, em função de um registro e de um enquadramento espacial específico de representação.

A primeira fotografia que retém aqui nossa atenção foi tirada por Pierre Verger no ano de sua chegada ao Brasil, depois de ter deixado o continente africano onde trabalhava para o Institut Français d’Afrique Noire [Instituto Francês da África Negra] (IFAN, com base em Dakar). Foi na cidade de Salvador que Verger iniciou sua pesquisa sobre a herança africana no Brasil.[5] A cena se situa numa rua, perto da igreja de Nosso Senhor do Bonfim, centro “nevrálgico” onde se misturam fé cristã, ritos e divindades ancestrais africanas, ligados à prática do candomblé, trazido pelos escravos que vieram em grande parte de Benim e de Níger.

A fotografia representa uma cena musical, em que se reúnem ao redor de uma mesa cantores e músicos. Verger explica que escolheu então uma postura de simples observador: “Minha abordagem nessas pesquisas tinha a ver com o estado de espírito do fotógrafo que eu era – ou seja, um puro observador que registrava aquilo que estava se passando diante de seus olhos, como uma simples testemunha, sem intervir ou perturbar o desenvolvimento dos acontecimentos”.[6]

 O concerto parece se aparentar mais aqui a uma “justa” musical do que a um concerto de rua tradicional. Observemos especificamente três personagens: os dois cantores e o violonista. À primeira vista, poderíamos ficar apreensivos com a cena, de tanto que o rosto do cantor que está ao centro (dando a réplica a seu parceiro à direita) ostenta uma expressão ambígua, dividida entre uma exaltação animada por seu canto, que parece fortíssimo, mas também nuançada por uma espécie de inquietude no olhar, tudo isso ritmado pela batida sincopada do tamborim. Esse paradoxo expressivo contrasta não apenas pela alegria que emana de seu companheiro de canto, mas igualmente pelo violonista que se encontra isolado desse grupo: concentrado na execução da melodia, seu rosto se desvia da objetiva, com uma expressão que se poderia julgar significativa de uma ausência, correspondendo à inquietude do cantor que lhe dá as costas.

Esse contraste visual só faz reforçar a impassibilidade expressiva de seu rosto, entre contemplação e concentração, atento à melodia que executa. Essa fotografia se anima por um movimento expressivo centrípeto e dinâmico que se difunde desde o personagem central, federando de certa forma toda a assembleia que o rodeia, atenta. Sua expressão pode ser da ordem de uma extensão, considerada por Joaquim de Carvalho, em sua dimensão temporal, como uma forma de protensa, ou seja, um ato ou um efeito de ampliação (no caso de uma temporalidade): mantendo embora a atenção dos ouvintes reunidos a sua volta, ele orienta exclusivamente seu olhar em direção a seu vizinho da frente.

Assim, a expressão do homem situado à esquerda, dinâmica, parece oscilar ao mesmo tempo entre a dúvida – e mesmo a inquietude – e a contemplação: fortemente banhado por uma luz direta proveniente da borda superior esquerda da imagem, localizada sobre a metade de cima de seu rosto, ele difere de seu vizinho mergulhado na sombra, observando a paisagem de maneira impassível. A escolha dessa fotografia pode se justificar, apesar do salto temporal efetuado, na medida em que o rosto do homem à nossa frente parece evocar, por sua expressão, respondendo a ele parcialmente, o enigma colocado anteriormente: qual pode ser então esse mistério da saudade consignado na imagem, como a equação a três resoluções cuja incógnita só pode ser revelada em presença da esfinge, guardiã do tempo, pintada por António Carneiro? A imagem fotográfica parece progressivamente nos entregar alguns indícios de seu enigma, para o qual devemos ainda encontrar a solução.

A segunda fotografia foi tirada por Jean Dieuzaide durante uma reportagem em Portugal, nos anos 1950. Descreve uma cena típica de um cabaré da Alfama em Lisboa, bairro histórico dos marinheiros e dos pescadores da cidade, situado às margens do Tejo, onde é tradicionalmente cantado o fado. A composição dessa fotografia é muito similar à de Pierre Verger, mas ocorre num lugar fechado, fracamente iluminado. O tratamento da luz insiste de saída em todo o efeito dramático contido nessa cena – assim fazendo eco ao repertório tradicional do fado. Os personagens se repartem ao redor de uma mesa, alheios ou atentos ao canto da fadista.

Todos os olhares dos personagens se desviam da objetiva, mergulhados numa verdadeira contemplação, um profundo recolhimento interior, inclusive o violonista da margem inferior esquerda, que nos vira as costas e dirige seu olhar à cantora. Ela própria ergue os olhos para o céu: presente fisicamente, a expressão de seu rosto permanece entretanto inteiramente cativada pela melodia. A iluminação particularmente sutil combina perfeitamente com o caráter sacerdotal e encantatório desse canto triste. A tensão contida na expressão de seu rosto, presente e ausente ao mesmo tempo, é igualmente sublinhada pelo contraste entre seu rosto e o alto de seu busto “imaculado” de branco, envolto no tradicional xale preto das fadistas, mas também da posição das mãos, especialmente o punho fechado da mão direita, significativo de um gesto de resignação.

Um segundo elemento importante presente nessa cena se relaciona ao grupo de três homens sentados ao fundo da peça, dois deles situados na penumbra. O terceiro, mais próximo, recebe de certa forma a mesma iluminação que a cantora. Ele está “fixado” numa pose singular de melancolia, simbolizada pela cabeça apoiada na mão que a sustenta. Contrariamente ao personagem situado a sua esquerda, cujo olhar cúmplice permanece animado pela presença da cantora, este, como seu comparsa no plano de fundo, destaca-se, ostentando, entretanto, uma expressão no rosto serena e impassível. Essa “pose” é sintomática do homem melancólico. O fato de que esse ouvinte, assim como a cantora, esteja banhado de uma iluminação direta reforça, além disso, o efeito performativo desse canto: não gerador de uma ação em si, mas de uma pose. Esse é o poder do fado, essa suave melodia, triste, inquieta e alegre por vezes, comparável às queixas cantadas pelos poetas da bossa-nova, surgida a partir de 1958 no Rio de Janeiro. A saudade se torna, a partir daí, através do fado, o canto de um destino comum e de uma tristeza partilhada.

Esse sentimento profundo de tristeza produz nesse personagem, no caso em tela, um movimento de “retenção”: introspectiva e centrífugo, ela reúne, concentra, até paralisa com toda a sua força o sujeito que a sente no interior de si mesmo. É aquilo que Joaquim de Carvalho designa temporalmente com o termo retrotensa. O que devemos entender por esse termo? Para tentar melhor descrever a saudade, é preciso experienciá-la, pois, como todo sentimento que se manifesta no ser, ela permanece profundamente subjetiva, intransmissível em si, como já foi mencionado. Cada experiência permanece privativa de um sujeito. O que não impede, entenda-se, a partilha coletiva desse sentimento, embora cada um de seus referentes ou de seus objetos seja vivido de maneira única.

Podemos agora prosseguir com a hipótese de que a experiência coletiva e universal da saudade não se refere justamente ao objeto em si, mas supõe que seu caráter universal resida antes na sua fonte originária, manifestando-se pelo viés da imaginação. Quer se trate de seu processo de aparição – estimulada por um elemento performativo, como uma carta, um canto, uma fotografia –, quer de sua faculdade de reativar um objeto passado, perdido ou distante, graças ao recurso à imaginação. O papel da imaginação funcionaria de certa forma como um “teatro mnemônico”, provocado pela própria falta do objeto e que vem “reanimá-lo” sob a forma de uma imagem. A crença numa possível esperança de seu retorno (a fim de compensar sua falta) situa então seu sujeito num futuro hipotético. Isso, ao menos, a fim de evitar qualquer possibilidade de uma morte “simbólica” do objeto, pois, a partir do instante em que a falta (e portanto o desejo) é satisfeita – pelo retorno definitivo desse objeto –, a saudade perde sua razão de ser.

Se essa tensão temporal nos ensina sobre a complexidade ontológica da saudade, existe, por outro lado, um outro tipo de tensão, paradoxal, que se manifesta especialmente em numerosas pinturas. Referimo-nos novamente ao pintor José Ferraz de Almeida Júnior, autor igualmente de uma cena de gênero intitulada O violeiro, de 1899 – mesmo ano daquela que representa a Saudade –, e ao pintor português José Malhoa, autor de uma outra cena intitulada O fado, de 1910. Como as duas fotografias precedentes, esses dois quadros propõem dois “climas” específicos de sua evocação difusa através da música. Duas “situações” em que essa tensão paradoxal reforça a presença.

 

Essa tensão ressoa como uma vibração, mas difere de acordo com o lugar e o contexto de onde surge. A cena do violeiro de Almeida Júnior representa um registro pictórico em que o conjunto dos elementos que compõem seu quadro de representação é reduzido ao mínimo necessário, dirigindo toda a atenção do espectador aos dois personagens e à relação que os une através de seus gestos e de seus olhares, o elemento-chave da cena refere-se a viola (assim como a carta em Saudade).

Um dos aspectos mais marcantes em toda obra de Almeida Júnior remete a um efeito de retenção, especialmente presente nos dois protagonistas. Apesar da economia de elementos visuais, voluntariamente escolhida pelo pintor, essa cena dá conta perfeitamente, de um ponto de vista iconográfico, do espírito caipira que representa: um quadro restrito (uma borda de janela e seu parapeito), um pedaço de parede rústica e duas pessoas, uma de cada lado, a propósito do qual Mário de Andrade fará o seguinte comentário:

A influência da técnica europeia ainda predomina, e predominará até os nossos dias, mas os artistas de maior valor se voltam para a expressão da terra e do homem. O pernambucano Teles Júnior cria paisagens nordestinas de caráter vigoroso e fiel; e em São Paulo, Almeida Júnior, em luta aberta com as luzes do nosso dia e a cor da terra que a sua paleta parisiense não aprendera, analisa com firmeza os costumes e o tipo do caipira.[7]

A cena pintada por José Malhoa é bastante diferente, embora sua representação permaneça ela própria popular. Ao quadro campestre Malhoa prefere, por sua vez, o quadro feutré, suavizado e íntimo de um quarto. Ora, se a postura da jovem pintada por Malhoa não deixa de evocar aquela do ouvinte da fadista fotografado por Dieuzaide, seu rosto, não obstante, exprime mais um prazer da escuta do que uma tristeza consternada. A cena representada por Malhoa nos oferece uma visão íntima, a de uma serenata tocada por um amante que faz a corte a sua bem-amada.

Atmosfera decadente em que o pintor descreve um universo sulfuroso que se opõe inteiramente àquele a que os poetas saudosistas pareciam aspirar na mesma época, ou seja, uma cena cuja temática parece mais propícia a exaltar o desejo carnal do que a celebrar as glórias da nação. Além disso, essa cena rompe completamente com a visão tradicionalmente fatalista da saudade, enfatizada pelo fado, que, recordemos, caracteriza-se acima de tudo como um tipo de queixa criada nos portos de Lisboa. Essas vibrações instáveis convidam a jovem lasciva, de corpo praticamente oferecido, a se abandonar ao roçar das cordas e aos sons melódicos do músico. Essa representação contrasta portanto, nesse sentido, com a ingenuidade aparente dos personagens de Almeida Júnior. A partir daí, essa visão da saudade não corresponderia, como um contrarretrato, subversivo, ingênuo e atrevido, como uma sátira popular da elite portuguesa da época?

Uma mesma tensão paradoxal se estende a cada um dos instrumentos que servem de “pretexto” narrativo e relacional entre cada casal de personagens e ilustra paralelamente uma intenção oposta: podemos assim considerar o exemplo brasileiro mais próximo da ideia de saudade introvertida, embora seu título, contrariamente ao exemplo português, não o sugira explicitamente (ainda que revele, nesse sentido, aquele efeito de retenção). O violeiro brasileiro permanece distante. De olhos fechados, acaba por se isolar do mundo “visível” em prol do mundo “audível” (da mesma forma que Orfeu, em busca de sua bem-amada, vai atrás dela, no coração dos infernos, acompanhado de sua lira). A cena de gênero de Malhoa insiste pelo contrário na ideia de uma intenção extrovertida, como numa mise-en-scène em que os atores adotam uma “pausa-modelo”, quase forçada.

Assim, o sentimento de ausência (e, de certo ponto de vista, de ausência de sentimento) se propaga e se traduz, nos dois casos, nos violeiros que se furtam paralelamente a nosso olhar. Ausência similar encontramos em cada uma das mulheres, ambas com os rostos voltados para seu companheiro músico. A viola (ou a guitarra típica dos fadistas), como elemento figurativo ativo, revela assim em cada um dos quadros uma evocação da saudade bem diferente. Do aspecto particularmente inovador, para não dizer moderno, que nos propõe esse violeiro, parece, em definitivo, não permanecer mais que sua representação arquetípica popular.

O contraste com o modesto quarto de Malhoa se faz ainda mais flagrante. O violeiro é, além do mais, uma obra tão particular que opera uma verdadeira representação invertida da relação do pintor com a paisagem clássica, como esta foi codificada por Giorgio Vasari: a janela, enquanto dispositivo de representação, não se abre para o exterior, mas para uma parede interna de tijolo, isenta de qualquer decoração. Não se trata aqui de introduzir o espectador numa paisagem pensada como storia, ou seja, uma janela de que se pode observar uma história. Qualquer possibilidade de escape é aqui obliterada, excluída. Esse parti pris não é um caso isolado: podemos encontrá-lo também em certos filmes contemporâneos de ficção. São Bernardo, filme dirigido por Leon Hirszman em 1972, a partir do romance homônimo de Graciliano Ramos, oferece-nos um exemplo particularmente evidente.

O primeiro fotograma selecionado é extraído do plano em que Paulo Honório, modesto vendedor que se torna um rico proprietário de terras, encontra Madalena, uma professora que mora então na cidade, em sua casa, para pedi-la em casamento. O dispositivo é estranhamente similar: os dois personagens são filmados em plano fechado recortado pelo enquadramento da porta-janela. A janela serve assim de quadro – de lugar mnemônico – durante toda a sequência em que Paulo Honório, impaciente e intransigente, não para de ir e vir, enquanto Madalena permanece calma, quase impassível, diante de seu pretendente. Ao contrário do exemplo de Almeida Júnior – no qual tudo o que importa para a composição se concentra na linha oblíqua que dinamiza a relação existente entre os dois personagens, apesar de sua posição estática –, a relação dos dois personagens do filme é reforçada pela linha horizontal do rebordo da janela, que acentua assim o caráter estagnado e frio de uma relação complexada, desprovida de qualquer expressão espontânea de um amor nascente.

Essa sensação de vazio estranho se confirma por outro elemento presente no São Bernardo de Hirszman. Da mesma maneira que a representação da melancolia – como constataremos posteriormente – pôde encontrar na figura da acédia uma de suas mais célebres alegorias, descrita sob os traços de uma mulher preguiçosa e apática, fiando inexoravelmente numa roca de lã, a saudade também pode suscitar um tédio impassível. Esse tédio se encarna no filme justamente através da figura (e dos gestos) da bordadeira: assim como passa e repassa um fio esticado através do bastidor, ela se resigna a sua tarefa, concentrando então tanta tensão em seu trabalho que consegue fingir seu afeto, indiferente àqueles que a circundam. Essa figura indica, portanto, a imagem metafórica de uma relação que, ao contrário da deliciosa dor do coração do poeta, traduz pela repetição mecânica de gestos a imagem do triste cotidiano de um amor que se tornou enfadonho, alienante. Consciente igualmente de que a única maneira de escapar do ciúme doentio de Paulo Honório será o suicídio.

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[1]  MORAES. Chega de saudade. In: Livro de letras, 2005, p. 30-31.

[2]  TOBIAS. O mistério da saudade, p. 39-40.

[3]  CARMO. Subsídio para o estudo da saudade e nostalgia no povo cabo-verdiano, Lisboa, 1956 apud COSTA; GOMES, Introduçnao à saudade, p. 28.

[4]  DUARTE. Leal conselheiro, apud Demerson. L’amour dans o “leal conselheiro” de Dom Duarte, p. 483.

[5]  Verger. Entrétien avec Véronique Mortaigne, [s.p.].

[6]  Verger. Entrétien avec Véronique Mortaigne, [s.p.].

[7]  ANDRADE. As artes plásticas no Brasil. Revista da Academia Paulista de Letras, São Paulo, ano VII, n. 26, 12 jun. 1944, p. 27 apud Almeida Júnior. José Ferraz de Almeida Júnior: vida e obra, p. 30.

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O trecho acima é parte do recém-lançado ensaio Saudade [editora Autêntica, 368 págs.], de Samuel de Jesus. O autor nasceu em Chartres, França, em 1974. É graduado em Belas Artes pela Escola Superior de Belas Artes de Tours, em Artes Plásticas/Teoria das Artes pela Universidade de Paris I (Panthéon-Sorbonne) e em História da Arte pela Universidade François Rabelais. Atualmente é professor da Faculdade de Artes Visuais da Universidade Federal de Goiás.

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