L eia hoje trecho do diário de Krishna Monteiro, que atualmente trabalha na embaixada brasileira da Índia. Autor de O que não existe mais, ele lança seu segundo livro e primeiro romance em 2018.

* Por Krishna Monteiro*

 Nova Délhi, 12 de julho de 2015.

No dia em que reencontrei minha avó na Índia era a estação das chuvas. Por isso pensei que a semelhança daquela menina com uma foto de minha avó aos doze anos devia-se à terra e poeira em seu rosto, levantadas pela água. Minha ‘avó’ – morta no ano anterior, aos cem anos – surgiu de trás de um carro num daqueles sinais de trânsito de Nova Délhi cheios de mendigos e vendedores que aguardam a luz vermelha para invadir as ruas. Batendo à janela, eles pedem esmolas, vendem seus produtos. Era a época das monções: ventos do Mar Arábico e do Golfo Pérsico trazem todo mês de julho chuvas que marcam o fim da estação deserta e árida. No carro, a caminho do trabalho, senti uma batida no vidro. Era a menina. Tinha uma guirlanda nas mãos. Quando se vive por algum tempo em Nova Délhi, nos acostumamos a domar nossa piedade e resistir ao máximo a investidas de crianças como esta, que, ao fim do dia, entregam toda sua renda a um adulto. É um jogo de forças entre quem bate repetidas vezes, insistente, contando os segundos para sair do meio dos carros antes do fim do sinal vermelho, e aquele que dirige. Naquele dia, quando reencontrei minha avó na Índia, ao olhar para o lado e me dar por vencido naquele cabo de guerra, baixei a janela, pois a criança batia cada vez mais forte, a ponto de quase socar o carro. Falava pressionando a guirlanda contra o vidro onde escorriam, líquidas, as monções. Eu, que já conhecia e era conhecido de cada um dos mendigos que operavam naquele sinal, notei algo diferente no gesto da mão que ofertava as flores pela fresta aberta, e pensei que algo nela – a mão – me recordava a forma como minha avó me dava dinheiro, sábado à tarde, escondida de meus pais.

A mão forçava para baixo o vidro, obrigando-me a descê-lo.

Minha avó costumava me contar histórias. Dizia que, aos doze anos, quando perdeu sua mãe e foi entregue à guarda de uma tia, no Sul de Minas Gerais, houve um instante em que o pai, após juntar todo o dinheiro da semana para pagar um fotógrafo – um luxo naquela época –, colocou-a de pé em frente ao muro de casa com os cabelos repuxados para trás num coque e o melhor vestido, dando-lhe de presente, também, a muda de uma videira. E foi assim que me lembro de ter visto minha avó em uma de suas primeiras fotos: ereta, de costas contra o muro, nas mãos amparada uma videira.

A mão força a guirlanda para dentro do carro, recebe em troca uma nota de dez rupias. Ao olhar para aqueles dedos que me pareciam tão mais velhos que os de uma criança, eu me dei conta de que, na Índia, na estação das chuvas, durante as monções, era impossível encontrar mendigos andando em cruzamentos, pois todos estariam nas calçadas, abrigados. Nova Délhi é uma cidade de árvores antigas, altas. Até que passasse a chuva, mendigos ficariam embaixo delas, a poucos metros do trânsito. Mas os dedos que ofertam a guirlanda parecem ignorar essas regras e fronteiras.

É doze de julho de 2015. Há um mês, vivo em Nova Délhi, Índia. Acelero o carro. Sigo em meu trajeto rumo à embaixada do Brasil, vendo, pelo retrovisor, distanciar-se a imagem de minha avó as doze anos, ereta no meio da avenida, seca apesar da tempestade e das monções, rindo com uma nota de dez rupias na mão direita, um maço de guirlandas na esquerda, parecendo ser atravessada em seu reflexo por centenas de carros atrás de mim. E lembro-me da frase de Lévi-Strauss, em Tristes Trópicos: “Por um paradoxo singular, minha vida aventureira mais me devolvia o antigo universo do que me abria um novo, ao passo que este que eu pretendera dissolvia-se entre meus dedos”.

* Krishna Monteiro é jornalista e escritor,  trabalhando atualmente na embaixada do Brasil na Índia. Foi finalista do Prêmio Jabuti – 2016, na categoria Contos e Crônicas. Seu segundo livro e primeiro romance será publicado em 2018 pela Tordesilhas Livros.

Foto: Nione Cristina Claudino

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