* Por Paulo Ribeiro*

Grande Sertão: Veredas é um imenso contar atravessado por contos. Aproveitou-se João Guimarães Rosa da tradição bíblica da oralidade, e do primitivismo da fala dos jagunços, para narrar os “causos” de Riobaldo, que estilizam a costura geral das tantas histórias esparsas do romance. O mais extenso causo do livro é o de Maria Mutema, contado a Riobaldo por Jõe Bexiguento.

Trata-se de uma mulher que matara o marido introduzindo em seu ouvido, enquanto este dormia, chumbo derretido. Arrependida de seu crime, a viúva passa seguidamente a ir à igreja na esperança de que, com a frequência de suas confissões, possa ser perdoada.

O padre Ponte, homem bonachão e gordo, começa então a definhar até que acaba morrendo. Com a morte do padre a viúva nunca mais vai à igreja.

Certo dia, chegam ao vilarejo alguns padres missionários. No terceiro e último dia das Missões, adentra pela porta da igreja tomada de fiéis, Maria Mutema. Para na porta. Um dos missionários interrompe a Salve Rainha e se dirige à viúva. Que esta vá ao cemitério, lugar onde estão enterrados os dois mortos, e onde ele poderá tomar a sua confissão.

Mutema, então, aos gritos, confessa tudo ali mesmo, em público. Que matara seu marido sem qualquer motivo específico, e que mais tarde, por pura maldade, confessara ao padre Ponte que matara o marido por amor a este; o que era mentira. E, quanto mais o padre sofria e definhava, mais ela insistia na mentira, até que acabou o levando a morte. Mutema vai presa, depois de ser constatado que dentro da caveira de seu marido existe realmente uma espécie de bola-de-ferro, que fazia barulho quando era chacoalhada. A população perdoa Maria antes do julgamento e ela acaba sendo vista como uma espécie de santa do povoado, pois ela — arrependida e humilde — novamente se convertera.

Walnice Nogueira Galvão, de quem aproveitamos o resumo acima, em seu As formas do falso sugere que, “a coisa dentro de outra coisa”, o certo no incerto, é onde se processa a decisão de Riobaldo pactuar com o Diabo. Esta constatação se dá a partir do caso Maria Mutema que, para a autora, é a matriz de todo o romance, através do jogo de dupla imagem— concreto e abstrato — que propõe. A introdução de algo no cérebro, palavras ou objetos, toma a forma de algo fatídico e fatal; assim, chumbo ou palavra entrando pelo ouvido e se aninhando no mais íntimo de um homem, seu cérebro ou sua mente, “matam”.

Das várias derivações de contar, das imagens que se criam desta matriz imagética, que é o caso Maria Mutema, temos a história do jagunço Felisberto, que foi atingido por uma bala na cabeça e que irá conviver com este objeto internado no seu cérebro pela vida afora.

Em seu ensaio, Walnice defende a tese de que o diabo em Grande Sertão: Veredas atua através de micro-espaços no grande universo que é o seu contrário, Deus. Se Deus é tudo, cabe ao Diabo, e às imagens simbolizantes do mal, tomar formas subterrâneas, agir em “buracos”, por estranhamento e infiltrações (dialéticas), num cosmos representativo do bem e de um ideal de felicidade terrena.

A autora, dentro deste “universo”, estabelece três subdivisões destas manifestações de imagens, e da maneira que estas “coisas” irão agir dentro da outra. O espaço em que o “agente” degenerador se infiltrará no subconjunto de imagens são representados, ora pelo “bicho vil”, ora no mundo dos “seres ínferos”, ora ainda, diretamente “internado no ser humano”. Este último é que nos interessa, dentro do Caso da bala na cabeça.

Alguma coisa, literal ou simbólica, entra dentro de uma pessoa ou está dentro de uma pessoa, agindo sobre ela e causando um efeito. Efeito este que pode também se dar simultaneamente a sua causa. Bastamente explícito é o caso de Felisberto, em seus traços visuais, com a bala dentro da cabeça, da qual periodicamente emanam fluídos que o deixam com uma mancha esverdeada na face:

“O Felisberto — o que, por ter uma bala de cobre introduzida na cabeça, vez em quando todo verdeava verdejante”. Bala que não podia ser extraída por estar localizada no cérebro e que um dia mataria seu portador: “Aquele fato daquela bala, entrada depositada no dentro de um — e que não podia tirar de nenhum jeito, nem não matava de uma vez mas não perdoava na data, me enticava”.

Ainda seguindo o raciocínio de Walnice, veremos que o caso da bala na cabeça é um dos tantos “truques” (a expressão é nossa) — de concepção de imagens interligadas que formam o grande painel de “casos” que compõem o livro, e que possuem todos uma única e própria matriz.

“A materialização do sentimento transformado em coisa e desligado daquele que o contém, lembra imediatamente a matriz verbal da qual provém a imagem. O mesmo ocorre numa imagem que se poderia chamar de prévia, porque a imagem é anterior ao efeito, embora o efeito esteja sugerido nos materiais que compõem a imagem”.

É assim que, por exemplo, Riobaldo define o amor quando está falando do complexo e ambíguo sentimento que o une a Diadorim. “O amor? Pássaro que põe ovos de ferro”.

Em Felisberto, aquilo que se internou pelo homem adentro pode, então, ser a própria morte (concretamente, a bala), como pode ser o próprio amor (abstratamente), conforme nos respalda a matriz anterior do Caso Maria Mutema. Em Sertão Veredas, a imagem “mãe” foi rigorosamente criada para dar significativamente a impressão de que este sentimento abstrato, o amor, é um sentimento materializado numa imagem “dura” e “interna”. Uma bala na cabeça.

Paulo Ribeiro é escritor e professor na Universidade de Caxias do Sul. Breve, lançará a coletânea de contos, Bagorra

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