* Por Ronaldo Cagiano *

É entre o real e o sonho que tudo acontece.

                                                                                                 Jean Luc Godard

Não é por acaso que Estados alucinatórios (Ed. Caos e Letras, BH, 2019), obra que enfeixa onze contos de Eduardo Sabino, abre-se ao leitor com uma epígrafe muito sintomática de Jorge Luís Borges (“A literatura não é outra coisa além de um sonho dirigido”). O autor já sinaliza nesse diálogo com a estética labiríntica do escritor argentino uma arquitetura muito peculiar, em que as histórias são tessituras que percorrem o extraordinário para entender a realidade quotidiana, muitas vezes mais absurda que a fantasia.

Sabino toma a direção de um ousado thriller ficcional que consiste em prospectar o estranho que habita não só a vida ordinária como também os escaninhos e atalhos do inconsciente individual ou coletivo. Os estados de alucinação enunciados pelo título levam-nos a um exercício autoral de imersões profundas no que há de insólito na condição humana, em seus territórios afetivos, domésticos, sociais e políticos, instâncias que refletem o estranhamento num mundo e num tempo disruptivos em que a brutalidade que nos avilta e desumaniza remete à ideia de uma animalidade intrínseca. Homens e animais como feras que se coabitam e gestam um ambiente de desconforto e excentricidade, em que um estado de supra realidade se instaura para que se possa suportar (ou mesmo revelar) o mundo que aí está. Nessas histórias os protagonistas metamorfoseiam-se em entidades camufladas por uma tal perversidade.

Cada conto, ao mesmo tempo em que desnuda mazelas reais ou imaginárias, funciona como êmulo para um questionamento de nossa natureza e uma reflexão sobre os instintos e impulsos que nos percorrem e delimitam  situações bizarras que provocam transformações no homem e no animal, de modo cada qual assimile características tão extraordinária, como expansão do outro, numa simbiose escatológica.

Sabino transita por esses estágios pantanosos do inconsciente em que atalhos psicológicos e contornos delirantes se antagonizam para estabelecer uma outra realidade, em que o palpável não é o que se vê ou toca, mas aquilo que se (pres)sente no entrechoque entre o real e o imaginário, no refluxo de demandas e passivos íntimos que desaguam em pesadelos ou monstruosidades. Não há dúvida de que o sentimento do autor em relação a esse “mondo cane” ou a uma dita civilização contemporânea deu-lhe régua e compasso para traçar esse mapa teratológico de algo que nos atinge plenamente nos tempos atuais, essa sensação de sobrenaturalidade que advém de todas as coisas, seja nos corredores da vida comum, seja nos escaninhos da política, do trabalho e dos desejos. Estamos a viver, e Sabino intui e relata muito bem nessas histórias, o que já nos advertia também Samuel Rawet em  sua drástica leitura do que nos circunda: “A realidade é essa coisa sórdida e bruta.”  Portanto, essa escrita visceral e enigmática que Sabino pratica é, em última instância, ricochete de sua própria experiência com o ser humano, essa caixa de ressonância de dilemas e inquietações que flagra com imensa riqueza metafórica.

Carregado de símbolos e projeções metafísicas, Estados alucinatórios não doura a pílula quando coloca em confronto o sagrado e o profano, o visível e o ilusório, o vivido e o imaginado, as razões e as paixões, conduzindo o leitor a um caleidoscópio de sensações, a um carrossel de sentidos, a uma polifonia de percepções. Essas narrativas estão impregnadas de uma atmosfera kafkiana, povoadas de seres atolados em pesadelos, transitando nos abismos e lacunas espirituais onde um turbulento arsenal de angústias precipitam um mergulho do insondável, em dimensões ou latitudes que evidenciam nossa perplexidade

Exímio rastreador dos fantasmas e obsessões que se albergam em nossa  natureza mais abissal, Eduardo Sabino em sua instigante escritura joga com diversos signos, com aquilo que reflete uma certa alegoria dos nossos desequilíbrios e do eterno embate entre o bem e o mal, com o maniqueísmo que fecunda muitas vezes lutas sem sentido que subjazem aos conflitos existenciais. Uma obra de íntima filiação a  mestres do gênero, como Murilo Rubião, José J. Veiga, Edgard Alan Poe, Horácio Quiroga, Julio Cortázar, Juan Rulfo, Mario Arreguy, Stephen King etc, cuja mitologia guarda estreita analogia com as histórias contemporâneas desse jovem escritor mineiro, já tão seguro de seu ofício, tendo alcançado um sofisticado nível de elaboração tanto na temática quanto na linguagem.

Os contos de “Estados alucinatórios” atualizam a preocupação do autor com as demandas que nos apequenam e transformam a vida numa realidade tão absurda que é necessário que a arte venha em nosso socorro para explicar (e salvar) a vida. Numa época fragilizada pelos preconceitos, pelas várias formas de violência, pelo fetichismo do deus mercado, pela mercantilização da fé, pela demonização das expressões de gênero, pelo império do ter em detrimento do ser, pela incomunicabilidade e virtualismo das relações, essas histórias chafurda em nossa zona de conforto, trazendo à baila o que está oculto ou dissolvido nas mentiras que iludem ou deformam o nosso olhar. Sabino trabalha uma cartografia singular ao penetrar as regiões esconsas da imaginação, reverberando o que já anteviu Fernando Pessoa: “A espantosa realidade das coisas/é a minha descoberta de todos os dias”. E nesse diapasão, por meio de suas pungentes histórias, labora, sem equívoco, na mesma dimensão de Borges, pois também percebeu que “A literatura é revanche de ordem mental contra o caos do mundo.”

Ronaldo Cagiano é escritor e crítico

 

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