* Por Sérgio Tavares *

A leitura dos dois primeiros contos de Ruibarbo do deserto, de Léo Tavares, traz a impressão de que se trata de uma antologia com um recorte temático fechado. Os ótimos “Mas as coisas não deixam de existir no escuro” e “Hálux-furadeira” abordam a questão da homossexualidade através de experiências essencialmente humanas nas quais o comportamento e a orientação sexual do outro é alvo de censura, de escárnio, de negação, de brutalidade.

Enquanto o primeiro é conduzido por um narrador que tateia o passado do tio devastado pelo Alzheimer e descobre um relacionamento homoafetivo silenciado pela família (com um fim delicado e comovente), o segundo ocorre numa voltagem frenética, interiorizada num adolescente que sofre bullying na escola por conta da maneira afeminada de se portar, até ver a mesma violência atingir outro aluno e elaborar um plano de vingança, com uma virada final espirituosa e surpreendente.

São textos de um estilo dramático que usa as pulsões psicológicas como fio condutor, dando a entender que a particularidade compartilhada irá se repercutir por todo o livro.

Mas eis que o terceiro conto ganha vez, e a dedicação ao desenvolvimento da trama dá lugar à exploração da forma. Tal qual sinaliza o título, “O Deus da diegese” estrutura-se a partir de uma noção técnica no qual a realidade ficcional do enredo se manifesta dentro do próprio enredo. Neste caso, uma mulher enclausurada, que leva os dias cuidando dos pais e assistindo filmes na tevê, até que a sua rotina vai se modulando aos acontecimentos transcorridos na tela.

No conto seguinte, que dá nome ao livro, a transição irrefreável entre desatino e lucidez plasma uma história mental no qual uma personagem parece tentar se agarrar a um totem interior que vai se esfarelando até tudo dentro se tornar deserto. Outra a vez o magnetismo está no formato, armado em fragmentos que faceiam a si mesmos.

“Platinotipia” insinua, então, uma fusão entre modo e conteúdo, estabelecendo uma variação temporal em que os fatos históricos são evocados para retratar um ocorrido prosaico entre o cômico e o grotesco. A homossexualidade irá reaparecer como dispositivo de conflito, embora sem a contundência inicial, entremostrando-se em textos posteriores, mas definitivamente sem o vigor de um eixo temático. De fato, a busca por um sentido de unidade no livro irá levar a uma ideia de não pertencimento.

Todos os personagens são assaltados por uma sensação difusa de deslocamento, como se não coubessem ao lugar, aos próprios sentimentos, às recordações arquivadas, ao corpo que lhes vestem. O precioso “Antediluvianas” narra o encontro casual de duas mulheres que, há vinte anos, experimentaram um caso de amor. Através de um relato contíguo, a trama vai iluminando episódios que deixaram cicatrizes profundas por conta da exposição e da entrega ao desejo.

Tavares conduz, com habilidade, essa indomada fleuma pelo jogo formal, ainda que as narrativas que transcorrem por um circuito mais convencional, privilegiando o conteúdo claro, sejam as melhores. Não se trata de um atrito entre os componentes do conto (em O voo da madrugada, por exemplo, Sérgio Sant’Anna executa tal inteiração com maestria), e sim de um entendimento que o destaque à forma sobre o fundo evocativo proporciona invariavelmente histórias menos atraentes.

Tal desequilíbrio se sobressai especialmente quanto o autor adota um procedimento de aproximação entre a literatura e as artes plásticas, transportando as perturbações psíquicas a um plano em que o entrançamento vocábulo conforma quadros imagéticos que remetem à textura dos sonhos ou dos devaneios. Em manifestações, digamos, mais pedestres, essas tribulações mentais propiciam contos mais bem-acabados e empolgantes, a exemplo de “Devolvendo fitas de vídeo”. Com um charme de suspense, a trama se desenrola a partir de uma jovem que, certo dia, acorda alarmada em entregar uns filmes em VHS que havia alugado.

Enfim, não é o caso de avaliar a qualidade, e sim a edição. As regulares mudanças de tom e de edificação narrativa vão criando um descompasso na travessia do primeiro ao último conto, que poderia ter sido evitado se o autor optasse pelos textos guiados pelo tema que garante a noção plena de unidade. É claro que não há nada de errado com uma antologia que oferece percepções e experiências diversas, contudo, diante de um caminho linear tão prazeroso, dar preferência a altos e baixos soa apenas desnecessário.

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Ruibarbo do deserto, de Léo Tavares (editora Patuá, 164 págs.)

Avaliação: Bom

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Sérgio Tavares é escritor e crítico literário

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