Por Tailor Diniz *

O homem amarrado à cadeira olhava para baixo, para os sapatos lustrosos do homem que estava em pé, à sua frente, a mão esquerda apoiada numa lustrosa bengala de carvalho.

O homem com a bengala, por sua vez, procurava em vão os olhos do homem que estava sentado. Deu um passo adiante e disse, depois de alguns segundos de procura inútil:

“De qualquer forma, meu jovem, preciso continuar. Não sei se me entende, mas não tenho mais trinta anos. Creio que isso está claro para nós dois. Não tenho mais trinta anos. Ou quarenta. Idades em que a gente ainda pode esperar sentado pelas voltas que o mundo dá. Quando a gente tem essa idade, pode esperar. Mas na minha idade, meu caro, isso é impossível ou, no mínio, arriscado. Ou imprudente. Com a minha idade, o que precisa ser feito, precisa ser feito. Com trinta ou quarenta anos eu não perderia o tempo que estou perdendo aqui, agora, podendo estar lá fora, à luz do sol, vendo a vida passar. Deixaria o barco correr. Mas a coisa muda de figura com a idade que carrego nas costas, com muito orgulho. A coisa muda de figura. Com a minha idade, confesso, a coisa muda de figura, a gente começa a pensar na morte como nunca havia pensado na vida. Como nunca, a gente começa a pensar na morte, com a minha idade, tenha certeza. E a gente pensa de um jeito diferente de quando tinha trinta ou quarenta anos. Para quem tem trinta ou quarenta anos, o prazo de validade para os sentimentos, por exemplo, é menor. Bem menor, é o que digo. Vejamos o caso da afeição, para que me entenda. Da afeição recíproca, que parece ter sido o nosso caso. A afeição para quem tem trinta ou quarenta pode durar pouco. Muito pouco. Pois para quem tem trinta ou quarenta anos, meu caro, os sentimentos tendem a ser voláteis. Isso porque, para quem tem trinta ou quarenta anos, há tempo de sobra para serem desenvolvidas novas e variadas afeições durante os muitos anos de vida que ainda restam pela frente. Daí que, a qualquer momento, uma pode dar lugar a outra, sem demandas e delongas. Mas, para um homem da minha idade, assim como o amigo me vê, a tendência é que as afeições durem para o resto da vida. Para sempre. Por dois motivos: primeiro, que, em caso de velhos como eu, tudo o que queremos diante dos nossos olhos é alguém que se afeiçoe a nós. Quando isso acontece, é uma dádiva que se derrama dos céus. Segundo, que, na minha idade, ‘para o resto da vida’ pode significar seis meses, um ano ou vinte e quatro horas apenas. Então, justiça seja feita, não é muito difícil algo ser eterno para nós, se é que me entende. Deixando as coisas ainda mais claras, posso dizer que me afeiçoei à amizade que criamos e compartilhamos. A questão, me parece, é o desencontro dos nossos prazos de validade e suas idiossincrasias. Para quem tem trinta ou quarenta anos, citando um outro exemplo, as estações do ano e suas caraterísticas de luzes e de sombras passam despercebidas, como se fossem irrelevantes. E é, admito, sem delongas. Mas para um homem da minha idade, a cada primeiro fogo na lareira de um novo inverno, ou a cada dia de primavera recém-iniciada em que percebemos os dias mais longos e mais iluminados, é uma algaravia íntima a se manifestar na obscuridade das nossas almas. É um sinal de vida, meu caríssimo. É um sinal inequívoco de que conseguimos chegar a uma nova estação do ano. Uma nova estação à qual, um ano antes, não tínhamos nenhum indício claro de que alcançaríamos. E é aí que passamos a observar com mais critério as luzes e as sombras de uma nova estação, as luzes e as sombras na alma dos que nos rodeiam. Não sei se me entende. Com trinta ou quarenta anos, a morte nem existe, é algo que tem a ver com os outros ou com os velhos, não conosco. Com trinta ou quarenta anos, não é preciso ter muita pressa. A não ser, claro, para as urgências do amor e da paixão. Mas isso, agora, não vem ao caso. Esses são outros quinhentos velhos. São águas passadas. Chamas apagadas. Cinzas. É o que digo. Eu dizia, então, que com a idade de trinta ou quarenta anos dá para a gente sentar, servir um uísque e esperar pelo dia seguinte. Que, mais dia, menos dia, a volta vem, sempre vem. Mas com a minha idade é diferente. Muito diferente. Com a minha idade, não dá para esperar pela volta da roda. Na minha idade, quando se diz qualquer coisa sobre o futuro, a primeira coisa que se faz é calcular se ainda estaremos vivos até lá. Por isso eu vim, meu querido. Posso durar mais um par de anos com a mesma qualidade de vida que agora desfruto. Quem duvida? Ou um pouquinho mais, pois é para isso que me preparo e quero. Vá saber. Mas é praticamente cem por cento certo que talvez eu não viva o suficiente para que a roda dê uma volta inteira sobre si mesma e eu encontre conforto para a questão que me traz aqui. Olho no olho, como é meu feitio. Não sei se me entende. Com a minha idade, quando todos os amigos à minha volta começam a morrer ou já morreram, dificilmente haverá condições para que, ao natural, se arranjem as coisas que eu preciso que se arranjem. Olho no olho, como é meu feitio, eu já disse. Além do mais, e isso não é uma possibilidade remota, mas bem plausível; além do mais, posso simplesmente morrer de velho daqui a pouco, ali na sala ao lado, na próxima esquina ou logo mais à noite, quando me deitar para dormir com a consciência do dever cumprido. Nesse caso, e é isso que quero que o amigo entenda, não vou ter o conforto sobre aquilo que preciso ter. E, numa hora dessas, numa circunstância dessas, não viver com o conforto que a vida nos exige ter, não será bom para o descanso da minha alma, esteja ela onde estiver, no céu ou no inferno. E nem da sua, se é que me entende, nem da sua, é o que digo. Daqui para frente, nossas almas precisarão de descanso, estejam onde estiverem. Precisarão de descanso, não sei se me entende. E se não me entende, e para que me entenda, saiba que dentro de um homem, na alma de um homem, só tem uma coisa que a velhice não aceita, uma coisa que o coração de um velho bandido não perdoa: a traição e a sordidez de uma trapaça e todos os seus subprodutos que se espraiam como erva daninha na alma da gente. O asco à vileza de uma trapaça, no pano verde ou fora dele, é coisa que a velhice não mata dentro da gente, meu caro. Não sei se me entende. Não mata. É o que digo.”

O homem que estava em pé fez uma pausa. Deu tempo para que o que estava amarrado à cadeira dissesse algo. É possível que o homem sentado não tenha entendido a pausa com esse sentido. Ou talvez não tivesse mesmo nada para dizer. Então, o homem que estava em pé pegou a arma que carregava no bolso, firmou a mão esquerda na bengala para se equilibrar melhor, fez a mira na testa do outro e puxou o gatilho. Uma só vez.

Virou as costas e foi embora, os passos vacilantes, as pernas trôpegas, enquanto recolocava a arma no bolso do paletó de riscado.

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Tailor Diniz é escritor. Entre seus livros publicados estão Crime na feira do livro [Dublinense], lançado em alemão na Feira do Livro de Frankfurt/2013, finalista do Prêmio Açorianos de Literatura, edição 2011, categoria Narrativa Longa e A superfície da sombra [Grua 2012] lançado em 2015 na Bulgária e adaptado para o cinema, pelo diretor Paulo Nascimento, com estreia prevista para 2016. Foi, ainda, tema de mesa, com participação do autor, na Primeira Semana Brasil, na Universidade Sorbonne, Paris. Em linha reta, lançado em 2014 [Grua], é semifinalista do Prêmio Oceanos de Literatura

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