* Por Veronica Stigger *

A caixa era imensa, de papelão. Devia ter perto de um metro e meio de comprimento por um metro de largura e uns sessenta centímetros de profundidade. Três sujeitos a carregavam. Eles iam dentro dela, com a abertura virada por sobre suas cabeças, escondendo-lhes o rosto e parte do tronco, como se eles fossem a base e ela a cúpula de um abajur. Ou como se eles fossem as pernas e ela o corpo de um boi-bumbá. O tipo que seguia à frente vestia calça de abrigo escura, camiseta esportiva também escura e tênis branco. O do meio usava gabardine cinza na altura do joelho sobre uma calça social preta. Nos pés, sapatos igualmente pretos. Parecia ser o mais baixinho e talvez fosse o mais velho dos três. O terceiro era sem dúvida o mais alto. Precisava andar com as pernas levemente flexionadas para se manter numa altura próxima à dos outros. Usava calça, agasalho e sapatos pretos. Os três eram magros, ou davam a impressão de sê-lo. Mas não tão magros a ponto de serem chamados de cadavéricos. Eram magros, mas saudáveis, possivelmente alimentados a carne assada e batatas. Como a caixa lhes tapava parte do corpo, não havia como saber se eram negros ou brancos, ou negros e brancos. Muito menos, caso brancos, se loiros ou morenos, ou até mesmo ruivos. Também não havia como saber de que maneira eles andavam sem tropeçar. É provável que tivessem aberto pequenos furos na caixa para poder ver ao redor. Ou talvez a caixa já apresentasse frestas desde o início, sem necessidade de nenhuma intervenção. Aliás, não se sabia por que eles levavam a caixa daquela maneira, por sobre suas cabeças, dificultando a visão e a própria caminhada. Se estivesse chovendo, poderia ser para se protegerem: ela faria as vezes de um enorme guarda-chuva. Mas não estava chovendo. O dia amanhecera cinzento, mas sem deitar um pingo d’água, e assim permaneceria até anoitecer, o que se daria em breve. Talvez fosse alguma espécie de disfarce. Não queriam ser reconhecidos, apesar de nunca terem estado ali. Embora não se pudesse identificá-los, sabia-se com certeza que eram forasteiros: ninguém, naquela pequena cidade, atrevia-se a usar gabardine, mesmo na chuva mais intensa. Mas a caixa talvez fosse um sinal de pudor. Suas feições podiam estar desfiguradas e eles se envergonhavam disso. Ou talvez somente não houvesse outra forma de carregar aquela imensa caixa em meio ao vento forte que vinha do rio que contornava a cidade. Sempre ventava muito por ali. Se a levassem acima da cabeça, virada para o alto, ela possivelmente voaria. Debaixo dos braços, seria impossível, pois ela era muito grande. Vez ou outra, eles paravam e se abaixavam até que a caixa tocasse o chão, escondendo-os completamente. E assim ficavam, imóveis, por alguns minutos, a caixa parecendo ter sido abandonada no meio do caminho. De repente se erguiam e continuavam sua marcha. Cruzavam as ruas vazias em silêncio. Àquela hora, os habitantes da cidade já estavam todos em suas casas. Embora ainda não fosse noite, eles se preparavam para o jantar, servido tão logo os sinos da igreja da praça central anunciassem as nove horas. Nunca saberemos se o destino final daqueles três homens era mesmo a cidade ou se eles vieram parar aqui por acaso. Ou seria melhor dizer: por acidente? Depois de atravessarem a praça, em diagonal, eles estacaram. O que estava de tênis fez menção de seguir em frente, enquanto o mais alto deu um passo no sentido contrário. Quase rasgaram a caixa. Eles pararam novamente e se conservaram um tempo assim, estáticos, com a caixa na cabeça. O tipo de gabardine largava o peso do corpo ora numa ora noutra perna. O mais alto batia o pé direito no chão, em sinal de impaciência ou cansaço. O de tênis, que dera as costas para os demais, foi quem recomeçou a caminhar. Os outros dois o seguiram no susto. Colocaram-se então a caminho da escola. Escurecia. A noite era de lua cheia. Gosto das noites assim. Aguçam meu olfato. Eles subiram a escadaria da entrada e, sem largar a caixa, transpuseram a grande porta de madeira com maçanetas douradas. A porta da escola, como as dos demais locais públicos, nunca estava fechada, porque, na cidade, os estranhos eram raros. Quando alguém de fora aparecia, olhares o acompanhavam por toda parte, sem que, no entanto, pelo menos na maioria das vezes, fossem percebidos pelo visitante. Uma vez dentro da escola, os três percorreram o longo corredor do térreo com a caixa ainda cobrindo suas cabeças. Passaram pela sala da direção, onde Nelson, o faxineiro surdo-mudo, limpava meticulosamente o chão com o aspirador de pó. Diziam que ele não tinha ninguém e, por isso, morava no quartinho dos fundos da escola, onde se guardava o antigo esqueleto de plástico, que não era mais usado nas aulas de biologia. Nelson, que estava de costas para a porta da sala, não os viu e continuou seu serviço. Também não me viu. Assim como os três não me viram, em nenhum momento do percurso. Ninguém me via, nunca. Todos preferiam acreditar que eu não existia, embora soubessem que eu estava ali para fazer o trabalho sujo, o trabalho que nenhum deles tinha coragem de fazer. Só o Pacheco, o pastor-alemão, não fugia de mim. Ele vinha, me olhava nos olhos e cheirava minhas pernas para saber por onde eu havia andado. Nunca latiu para mim. Mas também jamais me abanou o rabo. Ele também vivia na escola, entre o pátio dos fundos e a sala do jardim de infância, a única sala de paredes coloridas, onde ele devia estar naquele momento. Os três sujeitos seguiram até o final do corredor e entraram no auditório, que estava vazio e escuro. O palco tinha apenas seis cadeiras, três à direita e três à esquerda, e um púlpito, como se tivesse sido preparado para receber alguma solenidade. Os três, depois de algum tempo parados perto do palco, deram meia-volta e saíram do auditório, estacionando no corredor por um instante, como se estivessem decidindo para onde ir. Caminharam então até a escada e subiram para o primeiro andar. Entraram pela primeira porta que encontraram, a da sala de biologia, na qual havia, em vitrines, animais empalhados e, conservados em formol, fetos humanos em vários estágios de formação. No corredor, enquanto os vigiava pela pequena janela que havia na parte superior da porta, tirei o uniforme e vesti a roupa de lobo. Quando eles finalmente largassem a caixa no chão e fossem fazer o que vieram fazer, o que desde sempre foi o objetivo deles, eu entraria na sala com cuidado. Sem que eles percebessem, eu me enfiaria dentro da caixa. Quando a levantassem novamente, enfim me veriam e estaria tudo acabado.

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O conto acima integra o recém-lançado Sombrio ermo turvo (Editora Todavia), da premiada autora gaúcha. O volume traz contos, causos, epifanias, poemas e textos de inspiração teatral.

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