* Por Alexandre Rabelo *
A despeito das forças repressivas, protocoladas desde a presidência, além do recrudescimento do meio editorial nos últimos anos, temos acompanhado um crescimento contínuo do número de publicações literárias envolvendo autores e personagens LGBT.
Observamos tanto uma diversificação narrativa interna à própria comunidade, com autores dos mais múltiplos vieses, quanto uma onda de romances de muitos autores admiráveis, considerados como sendo da cisheteronormatividade, acusados de dar protagonismo a personagens gays apenas para se manterem atualizados, mas usualmente através de um humor que defende os gays enquanto se resguardam em certa ironia distanciada, a não ser quando as personagens são vítimas que merecem o olhar supostamente puro, messiânico e superior dos “esquerdomachos”. Agora os LGBTs não são mais animais selvagens, somos bichinhos de zoológico.
Alguns desses romances escritos por héteros pressupostos foram alvo de crítica acirrada, baseada no conceito ao mesmo tempo revolucionário e desgastado de lugar de fala. Em meu entender como escritor, quero ser capaz de representar mulheres, negros, imigrantes, etc., não só gays brancos como eu, assim como acredito que podemos avaliar cada um dos trabalhos aqui citados, em específico os que veem o gay de fora, não apenas por seus pontos cegos, fruto de um binarismo intrínseco ao nosso momento histórico, como também pelos méritos alcançados pelos seus próprios objetivos no meio editorial brasileiro, o qual segue sendo, no geral, ainda mais conservador que algumas representações oportunistas em torno da comunidade LGBT. Cavalo dado não se mostra os dentes?
No caso da nova leva de personagens gays escritos por héteros ou bissexuais bissextos, 2016 foi uma data marcante. Nesse ano, Victor Heringer nos legou um romance de muitas camadas, em torno de um gay branco de classe média, com uma leve deficiência congênita, o qual se envolve com seu irmão adotivo negro, posteriormente assassinado. Anos depois, o protagonista branco acolhe o filho do assassino de seu irmão-amante, como forma de quebrar o ciclo de ressentimento, vingança e solidão. Ao mesmo tempo em que apresenta esse brilho empático que cativa muitos leitores gays também, traz na normatividade de idealizar o primeiro amor, símbolo de pureza, um discurso sub-reptício que nos diz que o amor não existe para aquele que sair do paraíso. Depois de um primeiro amor abortado, resta a solidão. Esta é a mesma crítica que tem recebido Me chame pelo seu nome, de André Aciman.
Nesse extremo, poderíamos colocar contraditoriamente muitos trabalhos de autores LGBT comprometidos em lutar pela representação de finais felizes, contra a tendência desconcertante de morte de LGBTs nas histórias mais divulgadas nos grandes circuitos. Mesmo em sua defesa apaixonada do final feliz, muitos ainda incorrem no mecanismo da vitimização como processo de redenção e superação cristã. Nesse viés, o recurso trágico da catarse é utilizado à exaustão, inclusive por autores gays que trabalham com autoficção, como Édouard Louis, na França. Histórias sobre violência, bullying, preconceito ou sair do armário são os carros chefe desse filão. A sociedade heteronormativa gosta de premiar livros e filmes em que o LGBT aparece sofrendo, mas ainda não encontra uma segunda chance fora da norma. Eddy Bellegueule, verdadeira identidade de Édouard, teve que apagar seu nome e existência anterior para florescer como alguém que denuncia a “história da violência“ nos ambientes suburbanos franceses, como se estivesse salvo da crise do masculino na academia de Paris. Para o brasileiro, essa travessia radical soa um tanto quanto absurda. Parece mais uma epopeia linguística. Ficamos com a impressão de que quando um livro apresenta um projeto explícito de militância, ou tese, a arte perde um pouco o seu potencial de rastrear ambiguidades e contradições.
Algumas vezes, um personagem gay de um autor de prosa tão heterossexual quanto Daniel Galera pode ser até mais profícuo. No retrato amargo dos sobreviventes da Geração X, em Meia-noite e vinte, homens e mulheres de classes e orientações sexuais diversas lidam com a solidão e o cinismo herdados historicamente. No caso do protagonista gay, trata-se de um rapaz mais masculino, chegando aos 40 anos, frustrado no trabalho e que, na compensação da aventura e da paixão, nunca desenvolve uma relação afetiva mais extensiva com os muitos jovens que recebe em sua casa, sem nunca assumir totalmente a figura de pai provedor. Podemos aplaudir Galera por fazer um registro tão potente de um caso bem comum de masculinidade tóxica entre os gays, ao mesmo tempo em que ouviremos a crítica de que se trata de mais um personagem gay relegado à dualidade entre uma existência obscura e outra normativa.
Atraídos por essa contradição tão banal quanto dolorosamente comum, temos autores gays como Bernardo Carvalho ou Alexandre Vidal Porto, que representam em seus últimos romances, Simpatia pelo demônio e Cloro, gays brancos bem posicionados profissionalmente vivendo casamentos forçados e em busca de um refúgio desesperado no sexo anônimo ou nas relações tóxicas. Para eles, quase não há saída, além do turbilhão hedonista.
Aliás, a frieza da sauna tem sido um dos locais mais explorados nessas e outras narrativas, um pouco pelo apreço do mercado ao pitoresco, mas igualmente por sua potência moralista como espaço de terror, tensão e degradação, obscuridade e segredo. E, na melhor das hipóteses, baile de máscaras onde passeamos pelo humor absurdo das relações livres demais para serem medidas, como no livro de contos As coisas, de Tobias Carvalho, vencedor da última edição do Prêmio Sesc de Literatura.
Em quase todos esses casos, existe uma tendência a relegar o homem gay à condição de desajustado afetivo funcional, segundo o olhar normativo. Outros autores buscam uma desconstrução da ideia de desajuste como doença e erro e tentam representar os afetos desviantes, presentes não só nos amores que conseguem ser fugazes e verdadeiros, quanto também nas novas construções de relacionamentos poliamorosos, entre outros arranjos sociais ainda pouco explorados na literatura, mas que tem como precursores figuras como Glauco Mattoso, Roberto Piva, Caio F. e Cassandra Rios. Sobretudo, há que se pensar a dignidade dos corpos que estão excluídos de qualquer forma de amor.
Um romance marcante nessa tendência é Oito do sete, de Cristina Judar, vencedor da última edição do Prêmio São Paulo de Literatura. Aí encontramos a inusitada troca de papéis entre um casal de lésbicas e outro de gays, o que se torna apenas um gatilho para intensos roteiros de autodescoberta, onde o que importa vai muito além do pensamento binário e categorizador típico da arte patriarcal, a qual todos devemos tributo. Dois de seus narradores são um anjo andrógino e a cidade de Roma personificada, corpos que dizem muito mais que a experiência do amor.
O romance de Judar é um exemplo de uma tendência muito potente que poderíamos chamar de literatura queer. De modo geral, são narrativas em prosa ou poesia, muitas vezes na intersecção entre ambos, obras em que se busca a fluidez dentro da sigla, o não-binarismo em todos os níveis narrativos, desde o identitário até o enredo e a carpintaria literária.
Tal é o caso de Rafael João, que nos poemas de Pelicano, esgarça nossa percepção entre identidade e alteridade, no que tange a questão de gênero, buscando um ponto de fuga na entrega inconsciente à linguagem do feminino. Por caminhos semelhantes segue Raimundo Neto, vencedor do Prêmio Paraná de Literatura este ano, com seus contos Todo amor que inventamos para nós, em que narradores gays, mulheres cis e trans se alternam e se confundem nas vozes e nas formas abismais de uma subjetividade tão bem fundada no mito do sagrado feminino. Outro autor gay que brinca bastante com o borramento queer da identidade é Cesar R. Pontual que, em seu diário em prosa poética Abra, flui por entre alter-egos como a “bicha parasuicida bissexta”.
Nesses textos, existe um tensionamento da linguagem, construída como colagem bizarra de fragmentos recolhidos do discurso normativo. Eu poderia incluir nesse hall meu último romance “Itinerários para o fim do mundo“ que põe em confronto duas ordens de discurso viradas do avesso. De um lado, apresento um ex-engenheiro quarentão que se descobre bissexual após um encontro dramático com uma forma de ancestralidade que o devolve ao centro de sua existência por meio de uma busca pela corporalidade sagrada. Ao mesmo tempo, traz certo cinismo e amargor da Geração X, com a fluidez suspeita dos Millenials. Ao seu lado, apresento um jovem negro suburbano que, apesar de ter conseguido uma vaga para estudar Letras e ser assim amparado por certo discurso empoderador, se encontra na mesma intensidade de solidão e falta de afeto que seu interlocutor mais velho. O fim do mundo é o agora onde novas relações explodem como reações à ruína da masculinidade reguladora.
Este ponto vem sendo trabalhado por outros autores gays interessados em representar LGBTs relativamente integrados, protagonizando histórias que sobrepujam o foco na sexualidade e mostrando os gays como bons para resolver intrigas ocultas nas famílias de bem. São romances bem arquitetados em que certo olhar queer atua por dentro de determinados gêneros literários clássicos. Um dos mais experientes, o Santiago Nazarian, muito antes de experimentar o pós-terror, já misturava seus toques de existencialismo bizarro e punk queer ao thriller e infanto-juvenil.
Quanto ao romance histórico e utópico, estamos bem representados por Samir Machado de Machado, autor de Homens elegantes, abrangente e pop como o thriller policial de Raphael Montes, Jantar secreto, que tem no protagonista gay um dos menos perturbados, em sua crítica feroz ao caráter predatório da sociedade carioca, em específico.
Esses autores colocam gays como protagonistas de outros enredos eletrizantes, sem usar a velha catarse trágica e valendo-se de certo olhar queer num humor ácido e debochado que está atento ao gesto patético das relações normativas. Também mostram o esforço consciente em tirar o gay de seus guetos e colocá-lo em relação com outros conflitos sociais, como é o caso do romance de Alexandre Staut, O incêndio, em que o protagonista gay está envolvido no processo de fechamento de uma biblioteca.
Um outro tipo de narrativa queer escrita por autores gays, em certo parentesco com esses últimos, vem daqueles que se notabilizam por um olhar que abraça todas as sombras, sem perder certo humor. Este é o caso das investigações sobre a depressão e o submundo das drogas e do sexo em Mike Sullivan e Hugo Guimarães, com obras que deslocam nosso sentido de bem-estar.
E o que dizer dos canônicos, como o João Silvério Trevisan, que no primeiro volume de sua trilogia da dor, Pai, pai, já nos demonstrou como sua linguagem clássica se tornou ainda mais cristalina ao adotar a perspectiva de alguém que quer vencer um ressentimento histórico. Cristalina também é a língua do mestre Marcelino Freire, sempre atento à oralidade malandramente ambígua da marginalidade em geral, dando voz a homens e mulheres que não são bons nem maus, mas sim salvos pelo humor elevado ao status de jogo de barganha pela sobrevivência. Marcelino sabe brincar como ninguém com os lugares de fala da alteridade mais imediata ao seu redor.
A propósito, não podemos deixar de encerrar esse panorama breve e incompleto sem ao menos mencionar os trabalhos de inúmeras mulheres lésbicas e bissexuais, bem como mulheres e homens trans e não-binários, na luta constante pelo não apagamento de existências dissonantes, como nas poéticas inquietas de Natalia Borges Polesso, Angélica Freitas ou Simone Teodoro, e em toda a linha de frente das minas do slam e do circuito de saraus, bem como nas obras de LGBTs afrodescendentes como Cidinha da Silva, cujas narrativas unem as lutas e conquistam sua própria rede de leitores-ouvintes.
No que diz respeito à produção trans, a Antologia trans, promovida e editada pelo coletivo TranSarau, já se tornou referencial, ao menos de boca pequena. E temos uma autora como Amara Moira, que está escrevendo um romance todo em pajubá, algo que promete ser um Joyce das travestis, após seu doutorado sobre a obra do autor irlandês.
O caminho está em aberto. Já não se fala mais de literatura de nicho ou minoritária. Os LGBTs viraram tema incorporado à cultura literária brasileira, apesar das dificuldades e incompreensões mútuas. Já não falamos mais apenas como poetas malditos e escritores underground. Estamos em toda parte, até nas bocas onde não gostaríamos de estar.
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Alexandre Rabelo é autor dos romances Itinerários para o fim do mundo (Patuá, 2018) e Nicotina zero, desintoxicação em uma noite (Hoo, 2015), vencedor do 5º. Prêmio Papo Mix da Diversidade. É dramaturgista do espetáculo performático “Anatomia do Fauno”, vencedor do prêmio especial Suzy Capó no 24º Festival Mix Brasil, em 2016. Atualmente, faz a programação de literatura do Festival Mix Brasil, o Mix Literário.
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Na foto, Caio Fernando Abreu