* Por Godofredo de Oliveira Neto *

Foi para mim um choque. A colega de Columbia, já francamente entrada nos anos, vasta cabeleira branca como um comprimido de paracetamol, antropóloga famosérrima, revirou os olhos diante do guarda municipal que veio nos ajudar. Ela vinha proferir uma conferência  para os meus alunos.

A Linha Vermelha parada por completo, um acidente mais a frente impedia qualquer movimento de veículos. Nossa aula estava marcada para às 11:10, sala H 116, no Fundão. Impossível chegar no horário.  A professora americana viera falando até ali da permanente sensação  de que, nos aeroportos, a sua mala nunca aparecia na esteira, era sempre a última. Dessa vez, no Galeão, acabou chegando mas demorou muitoooooo, o estresse foi enorme. Como se eu tivesse feito alguma coisa de errado e fosse sempre punida, explicou, em portunhol. Talvez o estresse da véspera no Galeão e o fuso horário , não sei, o fato é que a professora, para nossa surpresa, esticou o braço fora do carro pela janela quando o policial nos explicava a paralisação. Alcançou o queixo do jovem uniformizado e tascou ”eres muy guapo, chico” . Todos os quatro do táxi gelaram, o guarda também, claro, só ela não. A frase em espanhol soou super íntima. Iria presa? Ia sobrar para nós? Delegacia, perguntas? Que nada. O guarda deu um sorriso e foi dar a mesma explicação aos outros carros. Ela saiu do táxi e foi atrás do seu novo encanto, colou no guarda, ele não dizia nada, parecia estar gostando. Se não quiserem acreditar não acreditem : Em certa hora – pasmem – se deram um caliente beijo molhado bem ali, em plena Linha Vermelha. Se me contassem eu também não acreditaria. Mas eu vi, e no Brasil tudo pode acontecer.

Liberado o trânsito – adeusinho ao guarda, beijos soprados da palma da mão para o seu guapo – chegamos à Faculdade de Letras, atrasados mas chegamos. A antropóloga então pediu desculpas. Traduzo do seu portunhol: não sei o que me deu, um desejo incontrolável, uma doideira, estava como com a minha família no táxi, nós quatro mais o motorista, amontoados no carro pequeno, rolou um sentimento incestuoso com vocês, ando meio doente, carente, abandonada, estou relendo a Gradiva, do Jensen, penso na ideia dessa comunidade intensa e inconfessável, li há tempos a interpretação do Freud, isso me provocou desejos incontroláveis, não sei bem a relação, sorry. É a psicologia do amor concretizando a teoria da libido –essa frase foi minha. A professora me olhou, indagativa.

Ela analisou, na conferência, o Mercador de Veneza, se pauta sempre por Shakespeare, falou do Bassânio e dos três cofres e emendou para os alunos: É sempre mais jogo escolher o cofre de chumbo e não o de ouro ou o de prata, viram , chicos e chicas? O complexo de Édipo pairava o tempo todo sobre as suas explicações. Uma confusão de conceitos e construções intelectuais deixava  a plateia tonta. Os escritores buscam tanto um prazer intelectual e estético quanto prazeres dos sentimentos; eis porque eles não conseguem representar a realidade sem modificá-la. Reconheci essa frase sua de textos freudianos.

É o que a gente chama de liberdade poética, acrescentei, olhando para os alunos. É o amor e o desejo, ela completou.

Depois as incertezas e as ambiguidades conceituais aumentaram e decidi dar por encerrada a conferência mais cedo. A colega novayorquina parecia voar sobre faunos e ninfas. Era mais prudente acabar com aquilo de uma vez. Os alunos, educados e cooperativos, aplaudiram, mas não entenderam nada, como me disseram no corredor. Soube depois que, já de volta à Columbia University, a professora pediu licença médica. Comentei com uma colega de Departamento o ocorrido e , para ela, eu também devia me tratar. O narcisismo do escritor se junta ao narcisismo do leitor, me fulminou ela com essa frase. Um exagerado amor por si própria, é o que você sente e ainda não entendeu a terceira grande ferida depois de Copérnico e Darwin, sua babaca, respondi. Eu não devia ter dito o palavrão, mas saiu, agora azar.

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Godofredo de Oliveira Neto é escritor e professor da UFRJ. Autor dos romances Menino oculto, Grito e Marcelino, entre outros.

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