M eu pai era um homem alto, gordo e forte. Tinha os braços no formato da orelha de um elefante, e, de vez em quando, gostava de acender o cigarro de ponta-cabeça. No dia em que casei com Júlia, ele fora em nossa casa com um aparador de quase dois metros de comprimento embaixo do braço. Depois que nos abraçamos, perguntou se tinha fogo, e logo sacou o cigarro.

Júlia era minha vizinha de porta, do tipo de vizinha que se fala para pedir sal, ou manteiga, ou trocar a lâmpada quando não tem mais ninguém por perto. E é assim que tudo começa. Depois de um ano, você casa no cartório mais próximo da residência com duas testemunhas maiores de dezoito anos, etc.

Após o casamento, nos mudamos para a casa dela, e nessa época vi muito pouco meu pai. Passei a visitá-lo apenas quando precisava de algo, e, em todas essas vezes, ele estava sentado no sofá: o filtro pegava fogo, a língua encostava a ponta do tabaco, a sala com cheiro de carvão queimando na churrasqueira.

 

Eu vivi uma vida bastante ordinária. Aos seis anos, estava na primeira série, com dez caí de bicicleta, aos doze bebi cachaça, nos quinze perdi a virgindade, dezoito tirei carteira de motorista, dezenove dirigi bêbado e bati o carro num poste de luz, aos vinte e um comi Júlia, aos vinte dois três quatro cinco eu só comi Júlia. E agora era hora de pensar em algo mais. Mas é claro que eu não pensava.

A grande parte das amigas de Júlia estava naquela fase em que todos os dias eram dias férteis. Mulheres de quase trinta anos entupidas de hormônios, que permaneciam deitadas com as pernas para cima por cinco minutos depois de trepar. Frequentavam sites que diziam “Dez dicas para engravidar naturalmente de uma menina”, e liam coisas do tipo que revelam o significado genérico de um sonho: sonhar com um jardim é sinal de gravidez.

Júlia dava sinais prematuros de entrar nessa fase. Ela falava sobre ir para uma casa maior e construir uma família, eu sentava na cama com os ombros encostando a parede, a lombar suspensa fazia com que, de vez em quando, ajeitasse a postura. Então ela jogava a perna por cima da minha e massageava meu pau. Eu olhava para o lado, pensava em coisa qualquer, sentia o suor gelado no meio das costelas, e era como se entrasse em erupção.

 

Minha família é descendente de judeus. Viemos de um lugar que não existe mais, onde hoje é meio que a Romênia, ou Bulgária, disso eu nunca lembro. Não sei se foi meu avô ou o pai do meu avô quem fugiu de lá. Não sei como foi a viagem, se estava sozinho no barco, o que achava do Brasil, se pensava em sustento, se conseguiu dormir, ou se pensou na adaptação para o português. Não sei como eu e meu pai paramos aqui, ao lado de Júlia.

A rua onde morávamos era uma rua estreita, cheia de prédios pequenos, e casas com o portão elétrico defeituoso. A primeira lembrança que tenho é do dia em que nosso gato morreu. Eu tinha oito anos e sabia que um gato vira-lata pode morrer de várias maneiras: atropelado por um ônibus de linha, envenenado pelo vizinho, mordido por um cachorro. Ele apareceu morto e a única suspeita que tivemos foi envenenamento. Meu pai disse porra, e enterrou o bicho no quintal.

Hoje não sei dizer exatamente onde o bicho foi enterrado. Um pouco antes de me mudar, perguntei para o meu pai e ele não disse nada, apenas me olhou como quem quer falar: será que algum dia você vai me entender? E aí foi como se eu nunca tivesse perguntado.

 

De vez em quando, aconteciam coisas estranhas com meu pai, e, para quem vê de fora, pode até soar inverossímil. Numa vez, eu e Júlia completávamos três meses de casamento e o barulho do ar-condicionado respirando como um paciente terminal não me deixava dormir. Eu levantei e olhei a casa dele pela janela. Todas as luzes estavam acesas. Quando abri a porta, meu pai estava de costas, a cortina de fumaça cobrindo o contorno de seu corpo. Talvez a casa estivesse cheia de balões coloridos, como se fosse um chá de fraldas de um único convidado. Tudo tinha um cheiro estranhamente volúvel, e ele disse, bem baixinho, caralho, mas que caralho. Mas isso não posso dizer com certeza.

 

(essa foi a primeira vez em que imaginei a minha morte)

 

No outro dia, enquanto preparava o almoço, Júlia falou sobre ir para uma casa maior, perto do centro, do meu trabalho e do trabalho dela. Um bairro razoavelmente nobre com creches e escolas por perto. Eu olhei para a casa do pai, e as luzes estavam apagadas.

Quando Júlia falava sobre isso, eu procurava mudar de assunto, então como vai o trabalho, ou como foi seu dia, o meu foi bom também. Mas, antes de qualquer coisa, ela pôs a mão no meu pau e disse estou ovulando. E aí você sente o peso avulso dos dentes (algo parecido com raiva), e uma pressão sob a gengiva. O peito inflama, fica quente, a fervura sobe até a garganta, e um zunido quase inaudível pressiona todos os seus sentidos. Botei-a de quatro e senti como se fumasse um cigarro só que ao contrário.

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O trecho do conto acima faz parte do livro O que acontece no escuro (Editora Taverna), que Davi Koteck  acaba de lançar. O autor nasceu em Porto Alegre, em 1995. Participou da antologia Qualquer ontem (Editora Bestiário, 2019) e tem um conto publicado na revista São Paulo Review. Em 2018, cursou a oficina literária de Luiz Antonio de Assis Brasil.

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