Leia trecho inicial do novo romance de Leonardo Padura, O romance da minha vida, previsto para chegar às livrarias em novembro de 2019. O livro pode ser adquirido em pré-venda, com 20% de desconto, pelo site da Boitempo (www.boitempoeditorial.com.br)

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– Um café duplo para mim, irmão.

Tantas vezes sua mente repetiu aquela frase, durante dezoito anos, que as palavras gastaram seu valor de uso na memória e no paladar, para soar vazias, como uma ordem dita num idioma incompreensível. Porque, apesar do esquecimento que tentou impor-se como melhor alternativa, Fernando Terry sofreu demasiadas vezes aquelas rebeliões imprevisíveis de sua consciência e com uma assiduidade ingovernável dedicou algum pensamento ao que teria desejado sentir no instante exato em que, depois de tomar um café duplo na frente do cabaré Las Vegas, acenderia um cigarro para atravessar a rua Infanta e descer pela Veinticinco, disposto a reencontrar o melhor e o pior de seu passado. Da melancolia ao ódio, da alegria à indiferença, do rancor ao alívio, em suas viagens imaginárias Fernando jogara com todas as cartas da nostalgia, sem pressentir que na manga escura, encolhida, podia permanecer aquela tristeza agressiva que se cravara em sua alma, com uma interrogação: você tinha que voltar?

No início de seu exílio, nos meses de incerteza vividos sob uma barraca asfixiante nos jardins do Orange Bowl de Miami, sem saber ainda se obteria residência norte-americana, Fernando começara a pensar num retorno breve mas necessário, que o ajudaria a estancar as feridas ainda sangrentas provocadas por uma traição demolidora e talvez, até, a curar a vertiginosa sensação de se achar descentrado, fora do tempo e em outro espaço. Depois, com o passar dos anos e a persistência da barreira de leis e disposições que dificultavam qualquer regresso, tentara acreditar que o esquecimento era possível, que até podia ser o melhor remédio, e aos poucos começou a sentir seu alívio benéfico, e a ansiedade por voltar foi se diluindo, até se transformar numa angústia adormecida, que sorrateiramente subia à tona em certas noites insubornáveis, quando na solidão do sótão madrileno seu cérebro insistia em evocar algum instante dos trinta anos vividos na ilha.

Mas, desde que chegara a carta de Álvaro com a notícia mais importante e que já não esperava receber, a necessidade de regressar deixou de ser um pesadelo furtivo, e Fernando sentiu-se compelido a abrir novamente o baú das mais perigosas lembranças. Então dedicou-se a ler, pela primeira vez desde que saíra de Cuba, os velhos papéis de sua malograda tese de doutorado sobre a poesia e a ética de José María Heredia, enquanto sua mente insistia em traçar cada um dos passos que o conduziriam até a casa de Álvaro, para enfrentar aquelas escadas sempre escuras e cansativas e cair de chofre no próprio vórtice de seu passado. Em seus percursos imaginários costumava alterar a ordem, o ritmo, a intenção de suas ações e de seus pensamentos, mas o início imutável tinha que ocorrer diante do balcão do Las Vegas, onde lado a lado com bêbados, trabalhadores da emissora de rádio próxima, algum motorista de ônibus apressado e os vagabundos de praxe, tomaria o café fraco e melado que costumavam coar na velha cafeteira que agora, com ardor infinito, ele descobriu que só continuava existindo em sua memória persistente e em alguma literatura da noite havanesa: a cafeteria Las Vegas e seu invencível balcão de mogno polido tinham se esfumado, como tantas outras coisas da vida.

 

Como se o empurrassem, Fernando fugiu daquele fracasso desconcertante e, ao pé do edifício escalavrado em que morava o amigo, entre latas de lixo transbordantes, paredes desgastadas pelo salitre e cães tristes e sarnentos, compreendeu que acabava de começar a guerra entre sua memória e a realidade, e preferiu seguir até o Malecón antes de subir à casa de Álvaro, onde podiam estar à sua espera ausências e tristezas ainda mais devastadoras.

 

Quase com alegria verificou que àquela hora da tarde, com o sol de verão ainda em atividade, o longo muro que separava os havaneses do mar permanecia deserto, embora ao longe avistasse alguns pescadores cheios de fé que lançavam suas linhas na água, enquanto da baía saía para o mar aberto um veleiro turístico engalanado.

 

Dezoito anos lutando contra os detalhes daquele momento para acabar envolvido na ingrata sensação de se ver novamente perdido fizeram-no duvidar de que seu regresso tivesse algum sentido e, por isso, teve que se aferrar à carta de Álvaro e à notícia que, em letras maiúsculas, o fizera enfrentar o transe de vencer todas as reticências e pedir um mês de licença para voltar a Cuba. FERNANDO, FERNANDO, FERNANDO: AGORA SIM HÁ UMA BOA PISTA. CREIO QUE PODEMOS SABER ONDE ESTÃO OS DOCUMENTOS PERDIDOS DE HEREDIA. E o amigo contava que o doutor Mendoza, antigo professor de ambos, transformado depois da aposentadoria em bibliotecário da Grande Loja, resgatara várias caixas de documentos maçônicos jogados num sótão do Arquivo Nacional e, entre os papéis, encontrara um capaz de lhe cortar a respiração: tratava-se da ata em que se registrava a homenagem que, em 1921, a loja Filhos de Cuba, de Matanzas, rendera a José de Jesús Heredia, filho caçula e último procurador do poeta José María Heredia, na qual se afirmava que o velho maçom havia entregado ao Venerável Mestre um envelope lacrado contendo um valioso documento escrito por seu pai, que deveria permanecer, a partir de então e até 1939, sob a custódia daquele templo, herdeiro do que iniciara o poeta independentista em 1822… Que documento valioso pode ser?, perguntava Álvaro, e Fernando concluiu que só poderia ser o suposto romance perdido de Heredia, que por anos – e sem o menor êxito – tentara localizar. Duas semanas depois, negando suas decisões anteriores, apresentou-se no consulado cubano disposto a iniciar os trâmites para obter um visto que lhe permitisse o retorno temporário à sua pátria.

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Nascido em Havana em 1955, Leonardo Padura Fuentes é pós-graduado em Literatura Hispano-Americana, romancista, ensaísta, jornalista e autor de roteiros para cinema. Ganhou reconhecimento internacional com a série de romances policiais Estações Havana, estrelada pelo investigador Mario Conde, já traduzida em mais de quinze países, vencedora de diversos prêmios internacionais e recentemente adaptada para o cinema e a TV. No Brasil, é colunista da Folha de S.Paulo e colaborador do El País. Dele a Boitempo publicou O homem que amava os cachorros, considerada sua obra máxima, em 2013, e Hereges, em 2015. Pelo conjunto de sua obra, Padura recebeu ainda o Premio Nacional de Literatura de Cuba, em 2012, e o Princesa de Asturias, da Espanha, em 2015.

 

 

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