A catarse e o mistério na literatura

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Por Ricardo Bellíssimo *

Ao validar os efeitos da catarse por meio do solene ritual da leitura, Freud elucubrou a teoria de que as nossas lembranças, sem o devido resgate do afeto por elas então já vivenciado, seriam inúteis para o amadurecimento pessoal. Ao fazermos pouco caso de recordações e sentimentos incômodos que outrora nos afligiram, impedimos por fim a libertação de nossas mais insistentes angústias.

Os seres humanos, por conta disso, estão sempre em busca de compensações psicológicas para assim se autopreservarem das desvantagens que, em algum momento, sofreram na vida. Muitos inclusive exigem, ainda que inconscientemente, reparações constantes por antigas contendas que um dia feriram de maneira atroz a sua autoestima.

A arte, de uma forma geral, e mais especificamente a literatura em decorrência à sua degustação mais intimista, insurgiu-se assim, para o pai da psicanálise, como um alento a esse amor-próprio vilipendiado, destruído, na medida em que seria permitido, ao leitor, dialogar constantemente com os temas mais caros e igualmente presentes ao campo psicanalítico: desejos múltiplos, sonhos e censuras, estados mórbidos, amor e paixão, segredos, narcisismo exacerbado, vingança, autodepreciação, culpas, heroísmo, incesto, laços familiares, estranhamentos diversos, transgressão, prazer, e por aí vai.

Nesse contexto, literatura e psicanálise abraçam-se como saberes solidários, indissociáveis até, ao aguçar radicalmente o potencial do inconsciente para tão logo detectar as mais enraizadas inseguranças e dúvidas humanas. A leitura, do mesmo modo que uma sessão de análise, seria capaz de identificar toda essa latência dissimulada, reprimida, já que propicia ao leitor um profundo monólogo consigo mesmo.

E tão mais efetivo seria esse exercício quanto mais um texto flanasse pelo imaginário por meio de metáforas inusitadas, bem como das entrelinhas e do não dito. Isso, para Freud, também permitiria ao leitor preencher suas lacunas de carência, sobretudo a de suas intolerâncias, com uma maior flexibilidade e compreensão de si próprio e, por sua vez, do outro. Ao confrontar-se, no transcurso da narrativa, com sensações até então incoerentes e adormecidas dentro de si, o leitor ainda poderia se sentir motivado a iluminar o pântano onde chafurdam as suas mais inconfessáveis fantasias.

É possível ainda, por esse viés associativo, agregar os efeitos transcendentais do texto ficcional na mente humana, como também já foi um dia aventado pelo escritor Jorge Luis Borges (1899-1986), que, a partir do cunho mítico-fantasioso que encampa alguns livros, alçou a literatura a uma categoria profética, e até mesmo salvadora, ao reservar um espaço de excelência para o impossível. Através de um romance, o impossível tenderia a perder sua natureza intangível ao metaforizar, por meio das mais variadas figuras de linguagem, o caráter obscuro de um personagem, concedendo, em seu lugar, licenças poéticas aparentemente irreconciliáveis como, por exemplo, um suicida por felicidade, um ditador da paz, um assassino por benevolência, um delator por humildade, entre outra sorte de incoerências morais.

A incongruência subjacente a tais conceitos éticos faz com que a catarse assuma, neste caso, uma condição inseparável ao texto ficcional já que a literatura reinventa-se, incondicionalmente, por conflitos existenciais que também duelam o tempo todo dentro da imaginação de cada leitor.

Dinâmica do Mistério

Resgatar, assim, a dimensão oracular em um texto ficcional faz ainda com que o leitor busque alguma expressão de clareza em meio aos seus tantos enigmas interiores. Não por acaso, a dinâmica de um livro de suspense é igualmente frutífera a essa redenção contínua da psique. É nesse sentido que, a grosso modo, o suspense pode até se assemelhar a movimentos de vanguarda que pretendem primeiramente agredir e sacudir, para depois acordar.

O mistério, com efeito, dilata e contrai constantemente as nossas emoções e, por meio dessa mecânica psicológica, consegue em algum momento expulsar medos e traumas sorrateiros há muito encovados em nós.

Não à toa, o apelo sedutor que proporciona a literatura policial, ou mesmo de terror, coincide com a possibilidade de se buscar um mínimo de amparo no desamparo ao desvendar os mistérios pontuais de uma trama, posto que, diante do enigma, a razão baixa imediatamente sua guarda para a emoção enfim tomar o seu lugar. É justamente nesse estágio que a índole humana se torna mais volúvel e extremamente suscetível ao processo catártico. O poder contido no mistério, afinal, antes de alcançar a consciência atinge a alma, o inconsciente, para depois turvá-los e, com alguma sorte, libertá-los de suas inúmeras pulsões.

O mistério apenas mostra ao leitor um universo que nele próprio se esconde.

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Ricardo Bellíssimo é jornalista, historiador e escritor, autor dos romances Sufoco e Negro Amor, entre outros

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