Loteria

sarau-heitor-dos-prazeres

Por Sérgio Tavares *

Toda a vez que minha mãe pedia para chamar meu pai, eu cruzava o portão, atravessava a rua e ia até o bar. Meu pai passava o dia inteiro no bar. Em casa, apenas dormia. O bar era uma espécie de prisão voluntária, onde recebia visitas regulares dos filhos. Com a família, ele vivia em regime semiaberto.

Meu pai trabalhava num embarcadouro, lixando navios. Ficava metade do mês fora de casa. Quando retornava, ia direto para o bar, com o bolso gordo pela féria. Os frequentadores já sabiam e o recebiam com festa, prevendo que distribuiria cerveja à larga e petiscos sem limite de despesas, enquanto minha mãe se virava para que não passassem fome os cinco filhos. Às vezes, ele ficava tão bêbado que não resistia e caia pela rua. Um vizinho estreitava o portão, avisava e, envergonhados, íamos ao seu resgate.

Um dia meu pai entrou pela casa, num horário incomum de aparecer, anunciando que tinha ganhado na loteria. Trazia o bilhete entre os dedos. A princípio, ninguém deu bola, então ele tirou do bolso um recorte de jornal com a série de números do sorteio recente. A sequência exata. Entramos numa gincana de euforia. Minhas irmãs berravam sonhos, minha mãe, de joelhos, rezava alto, aos prantos. Eu e meu irmão corremos até o quintal para pegarmos duas sacolas de lona a fim de depositar os milhões de cruzados.

Naquela mesma tarde, acompanhei meu pai até a casa lotérica. Sentia o coração indomável pulsar por todo corpo. Fomos até um guichê e de fato os números estavam corretos, contudo eram de um sorteio ainda porvir. Meu pai tinha comprado o bilhete de um salafrário que havia repetido a série premiada. Enganou a todos nós.

Olhei para ele, que me retribuiu com um sorriso de canto de boca, entregando-me a sacola e tomando a dianteira. No caminho de volta, enquanto atravessávamos um terreno baldio, deixei que se distanciasse e catei um pedregulho. Aproximava-me, quando levianamente ele guinou os passos rumo ao bar, sobrepesando em mim a tarefa de informar a todos. Nunca vou esquecer a expressão congelada naqueles rostos, ao empurrar a porta.

Considero o episódio da loteria um marco, pois a partir dele se iniciou uma sucessão de mudanças irrevogáveis. No inverno subsequente, minha mãe foi internada em razão de uma pneumonia que a asfixiou até o fim. Eu cursava uma escola técnica à época, e, numa dessas chances únicas, fui convidado a participar de um câmbio de estudantes fora do país. Nunca mais retornei àquela casa. Não soube do meu pai e dos meus irmãos. Subtrai o passado tal um tecido que se dobra e encurta-se a extensão. Passaram-se vinte anos.

Até que recebi um telegrama comunicando a morte do meu pai. Não sei, talvez pela brevidade das palavras, decidi voltar. Eu havia me tornado um homem com opiniões e escolhas próprias, e reencontrar meus irmãos foi como abraçar uma pele rançosa que eu tinha conseguido trocar e eles não. Todos feios e repletos de filhos, netos. Chocos.

Conversamos, durante o velório. Nenhum deles tinha se transferido dos arredores da velha casa, onde uma irmã continuou acolhendo meu pai, no tempo em que não estava no bar ou nas ocasiões em que, mesmo velho e doente, bebia até cair pela rua. Quando o caixão foi ajustado na sepultura, eles choraram ruidosamente, e minhas irmãs começaram a chamar meu pai de herói. Foi então que percebi que filho também se cria com ausência.

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Sérgio Tavares é autor de Queda da própria altura, finalista do 2º Prêmio Brasília de Literatura, e Cavala, vencedor do Prêmio Sesc de Literatura, categoria Contos. Tem textos publicados em antologias, periódicos e sites nacionais e internacionais.