* Por Leonardo Almeida Filho *

Ainda dói, ele pensa, mas é uma dor que parece não ter lugar, que só dói assim, pulsando, latejando dentro da gente. Dor mastigada, ele range os dentinhos. Dor que engasga a gente, ele vislumbra. Encolheu-se todo, parece uma conchinha de carne, um bichinho indefeso, e sente muita dor. Ai, ui, suspira. Não está na marca do cinturão nas costas, a dor, nem nos vergões vermelhos nas canelas, mas estranhamente há dor em toda parte e em lugar nenhum. Ai, ai, ele geme baixinho. Não chora, não deixou cair uma lágrima sequer, nada, nada, seco. Engoliu o choro que ainda tentou brotar nos olhos, engoliu com ódio a lágrima que não verteu e desceu rasgando a garganta pra sumir-se no mais sem fundo escuro de suas partes com um gosto forte de sangue que não há, gosto amargo, sabor de coisa indesejada. Abandonou-se ao silêncio, deixando-se levar pelos pensamentos que ferviam, primeiro em fiapos, depois numa grande tessitura de rancor e desejos de vingança. Ai, ai, ele bramia e inconscientemente cultivava ódio.

Naquela tarde, quando o pai chegou do trabalho um pouco mais cedo, foi encontrá-lo no fundo do quintal brincando com o filho do vizinho. Serginho, três anos mais novo que ele que acabara de completar nove anos de pequenos recalques e poucos risos, estava em pé, calção escolar de pano azul arriado, um sorriso marotamarelado estampado na face morena de anjo tupiniquim. Ele, sentado no chão diante do amigo, sentia uma sensação gostosa e inexplicável de examinar com uma fome esquisita a genitália de Serginho, que se deixava ingenuamente manipular. Com muito cuidado, absorto, alheio às coisas do mundo ao redor, tocava com visível prazer nas pequenas partes expostas. Nessa tarefa, que cumpria com extrema felicidade, observava-se com deleite, concentrando-se atentamente em seus próprios gestos, sentindo a boca encher-se de saliva. Não conseguia entender de onde vinha aquele desassossego feliz, aquela espécie de coceira gostosa, um comichão esquisito, uma necessidade…

Quando convidou o vizinho para brincar em casa, havia nele a vontade de saciar aquele desejo que, já há alguns dias, nutria de fazer justamente aquilo que o pai flagrara com espanto e cólera. Ainda ontem, ele relembra, quando viu Serginho mijando na rua enquanto brincavam de pique-esconde, pegou-se cismando a olhar com jeito diferente aquela cena que já presenciara outras tantas vezes, com outros amigos inclusive, e que, no entanto, nas diversas vezes presenciadas anteriormente, nunca antes adquirira esse tom de excitação, de vontade. Os meninos da rua costumavam jogar futebol todas as tardes e era comum mijarem em grupo, sorrindo, brincando uns com os outros, sem qualquer visgo no olhar, inocentes. Ele não, passou a perceber-se diferente dos demais. A exposição natural e espontânea da genitália dos amigos o deixava vidrado, disfarçando o olhar curioso que buscava a cena. Não sabia o que se passava, não tinha ideia do que era aquilo, por que surgia aquele movimento tão surpreendente dentro do seu coração? Claro que havia nele a desconfiança de que aquilo não era abençoado por ninguém, quase uma certeza de que tal desejo deveria ser ocultado dos olhares, escondido de todo mundo. Ouvia comentarem, com expressões de entojo, sobre o Sidnei, filho de dona Dalide, a costureira que morava numa rua próxima à dele, que fazia essas coisas feias com outros meninos. Um perdido. Pelo tom das conversas, das censuras, ele sabia que não deveria caminhar por essa via, para não perder-se também. Era preciso cuidado, dizia uma voz dentro dele. Em seus nove anos, formava-se a criatura dissimulada que iria carregar vida a fora, mas naquele dia, naquele exato momento, deixou-se levar por uma força muito maior que o medo. Naquela tarde, entregou-se ao desejo e à vontade de experimentar.

Não houve tempo para fugir do golpe. O cinturão, guiado pela mão paterna, marcou-lhe as costas num estalo seco e asustador. Pá. Quando se deu conta do que estava acontecendo, percebeu que a dor na carne vinha acompanhada por um sentimento de impotência absoluta. A culpa e o medo lhe foram inoculados a cada cipoada que recebia daquele familiar estranho ensandecido. As únicas palavras que o pai dispendeu foram: Pra casa, Serginho. Agora! O resto foi silêncio de língua e muita fala do couro furado do cinturão em sua pelezinha infante. O pai, descontrolado, desferiu-lhe uma surra tremenda, sem dizer palavra alguma. Agora, encolhido ali na cama, no cantinho escuro do quarto, ele geme baixinho a sua dor. Ai, ui, treme mais de raiva que de frio.

O pai é um sujeito taciturno, normalmente silencioso, dado a poucos prazeres e poucas palavras. Fala pouco, come pouco, dorme pouco. Tudo nele é pouco e parco. Vida comezinha, metódica. A mãe é mulher de fé, de cama, mesa e banho. Ao contrário do pai, ela é muito afetuosa com os filhos. Ele não. Nunca foi de muito chamego com a prole. Rígido na criação dos três meninos, não releva falhas, não perdoa deslizes, não esquece mal-feitos. Dividindo seu tempo entre o trabalho como estoquista numa grande empresa de laticínios, e as horas de televisão, quando assiste todos os noticiários e programas esportivos, leva a vida numa linha reta, quase sem alterações. Homem de pouquíssimas surpresas. É uma figura previsível e é justamente por esse motivo que ele lembra claramente daquele domingo excepcional. Daquele dia que lhe rendeu calafrios por um bom tempo. A mãe saíra para a missa com os irmãos e ele, por conta de uma gripe, ficou em casa a base de remédios caseiros com o pai que lia o jornal. Sentado na varanda, ele observava os dois vira-latas da casa, Rex e Ringo, brincando no gramado, na frente do lote, enquanto o pai, impaciente, os enxotava exigindo silêncio. Foi quando o Ringo montou no Rex, como se monta numa cadela no cio, e começou um vai-e-vem sexual explícito. Ele achou engraçado tudo aquilo, engraçado mas não surpreendente, pois já flagrara os cães nesse tipo de brincadeira que ele julgava sem maldade alguma. Assustou-se ao ouvir o pai desferir um palavrão, coisa inusual em sua boca. Pressentiu o pior quando o viu jogar com violência o jornal sobre a cadeira. A festa dos cães havia despertado algum demônio na cabeça do pai e desencadeado alguma coisa muito ruim no seu comportamento, pois levantou-se, foi à cozinha e voltou com uma faca enorme, aquela muito afiada que a mãe usava para cortar carne. Os cães não perceberam sua rápida aproximação e não houve tempo para reação. Chutou violentamente Ringo, que saiu ganindo sua dor, e segurou à força o pobre Rex, que inutilmente tentou fugir. O animal esperneou, desesperado, tentando desvencilhar-se da mão poderosa do seu captor. Tudo em vão. Estava sacramentado. O homem, sem qualquer sinal de simpatia, decidido e inexorável como um carrasco, cortou a garganta do cão num golpe, jogando-o depois no chão como um pedaço de carne, uma peça de pelo negro, um molambo. O cachorro tremia, como galinha abatida, morrendo aos poucos, engasgando-se no próprio sangue, que também jorrava no gramado. O olhar do pai era o mesmo desta tarde, ele relembra sob calafrios, quando o flagrou com o Serginho no quintal: olhar de ódio, de censura absoluta, de nojo, de desprezo. Olhar de quem busca exterminar, eliminar, destruir.

Quando a mãe voltou da missa, encontrou o marido cavando uma cova para o Rex, enterrando com o cão os sonhos de afeto do filho do meio, que a tudo assistiu calado, ocultando a própria dor. Ele aprendeu assim, desde miudinho, a não esperar absolutamente nada da figura do pai. Agora, sente dores que não sabe bem quando vão passar ou mesmo se vão passar algum dia. Talvez sim, transformem-se em outra coisa, tão ou mais incômoda que a dor. Uma coisa entranhada na alma, como pedra no sapato, fiapo de carne no dente cariado. Uma coisa que, mais que incomodar, provocará, instigará, desconcertará. Sim, por ora, nesta noite terá sonhos muito estranhos e acordará marcado irremediavelmente, mais sério, menos alegre e mais convicto de que viver é mesmo complicado. Por enquanto ele geme baixinho pela dor nas costas, no lugar onde a fivela do cinturão lhe bordou um hematoma. Ai, ui.

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Leonardo Almeida Filho (Campina Grande, 1960), professor universitário, escritor, ensaísta, reside em Brasília desde 1962. Mestre em literatura brasileira pela Universidade de Brasília (2002), publicou, em 2008, Graciliano Ramos e o mundo interior: o desvão imenso do espírito (EdUnB), entre outros

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