* Por Luciana Rangel e Leonardo Tonus *

Ayeda Alavie, autora iraniana premiada na Alemanha, em conversa com Leonardo Tônus e Luciana Rangel

A autora e tradutora Ayeda Alavie nasceu no Teerã em 1974 e vive na Alemanha desde o ano 2000. Ainda no Irã, Ayeda estudou na Academia de Cinema e trabalhou como redatora e editora de programas infantis e juvenis na Rádio Teerã de 1993 a 1998, tendo escrito e ilustrado diversos textos literários para crianças e jovens no país. Na Alemanha, ela estudou lingüística alemã, literatura alemã moderna e etnologia europeia.

Em 2020, publicou o livro Ein Bild von mir (Uma foto minha) pela editora Hagebutte Verlag. Trata-se de um conjunto de contos escritos entre 1992 e 2019. Neste livro, ela lembra sua infância no Irã, a Primeira Guerra do Golfo, a Revolução Islâmica, mas também suas primeiras impressões na Alemanha e a nova língua adquirida, aos 30 anos, utilizada como uma janela para a sua nova escrita. Em conversa para o projeto Migra, que que visa, entre outros, estabelecer um diálogo transnacional e transdisciplinar sobre as vivências da migrância nos dias de hoje, Ayeda nos fala sobre identidade, idioma e liberdade.

Leia o bate-papo entre Ayeda, Luciana e Leonardo:

LEONARDO: Em março de 2009, Olga Drossou e Sibel Kara, afirmavam em dossiê publicado pela Fundação Heinrich Böll : “A literatura de migrantes e autores com histórico migratório faz parte integrante da cultura alemã. Ao longo do tempo, desenvolveu-se uma multidão de designações extremamente diferentes e contraditórias, que não foram recebidas inteiramente sem críticas por parte dos autores. A tipologia empregada oferecia uma ampla gama de formulações tais como “literatura feita por estrangeiros”, “Literatura de migração”, “intercultural” ou “multicultural literatura. Obviamente falta aqui o termo “literatura alemã”.

Ora, desde os anos 2000, autores e suas obras já não podem mais ser facilmente relacionados à categoria de “literatura migrante”. Esta já não se vincula à Alemanha como local de atuação. Além disso, existem hoje mais e diferentes tipos de  “autores migrantes” do que há 20 anos. Torna-se  necessário abordar diferentemente a chamada “literatura migrante”. Mas de que tipo de “literatura” estamos falando aqui? Uma literatura com sotaque? Isso é possível? Quais são os temas que esta nova literatura aborda? Talvez Ayeda possa nos dar algumas respostas.  Ayeda, porque esse livro e porque em alemão?

AYEDA: Este livro é principalmente sobre Heimat, casa, identidade e idioma. Minha foto criança, que está na capa, foi decisiva para a criação deste livro. Pois muitas vezes penso que a minha foto criança pode simbolizar o Irã como um todo.  Porque nossa identidade iraniana, pré-islâmica, nossa pele e cabelo naturais normais estão escondidos por lenço na cabeça desde a revolução, muito parecido com esta foto de minha infância. Não há praticamente nenhum outro país na terra onde, ao longo de 40 anos, um regime lutaria contra a identidade e contra a língua, a cultura e a mentalidade de seu povo como o Irã.

Como se pessoas completamente normais fossem criminosas. Você se sente prisioneira em seu próprio país. Tomada como refém. Somente aqueles que dizem sim pra tudo e nunca protestam, não têm problemas.

Aqueles que protestam, terminam como os 1500 manifestantes que foram mortos a tiros na rua há dois anos, ou são executados como supostos criminosos e traidores ao país, como Navid Afkari e Ruhollah Zam, que só disseram a verdade. Sem recurso legal.

Não há liberdade de expressão no Irã e um livro crítico em persa como esse nunca teria acontecido. Já a língua alemã me deu uma casa para as histórias deste livro.

LUCIANA: Você ganhou o prêmio: Melhor livro independente da Baviera de 2020. O Juri disse: „poética, concisa, lembranças precisas e nada floridas” – A linguagem acompanha as lembranças nada floridas ou não cabe a  língua alemã florear este texto?

AYEDA: Com certeza pode-se escrever floreado em alemão, mas as histórias que estão neste volume são mais sobre sofrimento e saudade. Talvez seja por isso que minha linguagem não seja florida. Acho que nunca escrevi florido em minha vida. Nem mesmo para crianças e adolescentes. Escreve-se principalmente sobre o que se vê, entende e sente. E do que eu me lembro, eu não senti nada além de tristeza e miséria no Irã. Quando eu tinha 13 anos, eu colaborei com uma revista juvenil no Teerã, onde eu podia fotografar tudo o que eu achava que era importante, mas os editores sempre nos diziam: “Ver não é o mesmo que ver”. Você deve aprender a ver o mundo com os olhos abertos. Isso foi pouco depois da guerra de 8 anos entre o Irã e o Iraque. O que eu vi nas ruas foi a desgraça, injustiça, pobreza e trabalho infantil. Senti vergonha quando vi um adolescente da minha idade em Bazar, que em vez de ir à escola como eu, carregava caixas pesadas para ganhar um pouco de dinheiro. Como eu posso ajudar, eu costumava pensar. Sempre escrevi de forma realista, sóbria e crítica. Sem adornos. E só esse olhar crítico ficou comigo. Enquanto as pessoas forem torturadas nas prisões, enquanto os direitos humanos forem violados, eu como escritora – com uma visão mais jornalística do mundo – vou usar a linguagem como uma ferramenta. Pragmática e não de maneira sentimental.

LEONARDO: Você expressa acolhimento na lingua alemã que, no entanto, assegura um distanciamento com o espaço natal, com seu passado, e talvez até com o presente : na página 21 „A língua alemã tem um efeito abstrato em mim.  […] o alemão cria um novo espaço de pensamento em mim. Sobre fotos e palavras individuais. Me presenteia com a distância. De mim mesma. Do meu começo poético“. Mas este distanciamento protetor não seria também um perigo condenando-a eternamente ao espaço do observador como esta árvore isolada e solitária no jardim? „Ich wünsche mir selbst, dass ich in meinem nächsten Leben […] als Buche zur Welt komme.“ (S.20) (eu desejo voltar na próxima vida como uma árvore).

AYEDA: A língua alemã me dá apoio no pensamento e na escrita. Saber que ninguém na Alemanha me castigará por minhas palavras permite que eu me concentre apenas na escrita. Mas no que diz respeito a ser um estrangeiro, ainda me sinto assim. Também no Irã, porque o país tem sido ocupado pelos maiores inimigos da humanidade desde a revolução. É por isso que muitas vezes eu desejo ser uma árvore. Uma árvore sem gênero, religião ou nacionalidade.

Somente ao lado de pessoas, como minha  avó, pai e amigos, me senti em casa no Irã. Muitas vezes eu pensava que minha avó era minha Heimat, minha casa. E agora, depois de sua morte, eu mesmo sou a minha Heimat, minha casa.

Porque eu carrego muitas coisas dentro de mim. Ninguém pode tirar de mim meus pensamentos, minhas línguas e minhas memórias.

LUCIANA: Você comenta que algumas palavras quando traduzidas, perdem a “alma”. Como no exemplo de ameixa verde, que siginifica muito mais no Irã do que simplesmente uma fruta e sim, o verão a chegar, as férias de verão. Mas por outro lado, por exemplo, a língua alemã ou qualquer outro idioma, quando usado por um não nativo, ganha outro formato. Talvez uma nova alma? Na sua opinião, o que ganha um idioma ao ser usado por um não nativo?

 AYEDA: Você está absolutamente certa. Acho que a relação dos falantes não-nativos com uma língua estrangeira é como um relacionamento de troca. A língua alemã me dá muito espaço, proteção e liberdade. E por isso, eu a amo tanto que, mesmo quando me levanto, escrevo meus sonhos em alemão imediatamente.

Para responder à sua pergunta, tenho que voltar no tempo:

Além das minhas experiências literárias e jornalísticas no Irã, eu também li muita poesia clássica persa. Os iranianos dão grande importância à poesia e mesmo os analfabetos podem recitar de cor poemas de Hafez, Saadi, Rumi, Ferdosi e muitos outros poetas clássicos.

Além desta visão poética e mística, há também uma visão bem-humorada do mundo. Se você rir do absurdo das leis totalmente insensatas, então de alguma forma, neste país você pode continuar a suportar estas leis desumanas.

E tenho certeza de que carrego automaticamente dentro de mim este encontro do humor e do poético da vida no Irã. Tendo crescido com essas pessoas oprimidas e sendo uma delas, ainda carrego isso  tambem dentro de mim. Nesse sentido, eu sou iraniana por completo, vivendo na Alemanha, tendo cidadania alemã, mas escrevendo em alemão. E esta forma iraniana (isto é com  humor e ao mesmo tempo com poesia) de escrever em alemão pode ser algo especial, o que eu mesma não posso avaliar. Além disso, é claro, há muitas palavras ou frases que talvez sejam conhecidas na própria língua materna e não no idioma estrangeiro. Em todo caso, o idioma usado por um falante estrangeiro durante o processo literário e pelo uso diferente do idioma pode crescer.

LEONARDO: Você diz em seu prefácio: “Uma janela foi a primeira história que escrevi em alemão na época. E então muitos outros textos vieram em alemão. Poemas eu ainda escrevo em persa”. Quando li seu livro, não tinha certeza de que essa diferença ainda existisse. Sua prosa também é muito poética. Há um sopro poético em sua prosa. Você pode falar sobre esta relação entre prosa e poema em seu trabalho?

AYEDA: Deve ser talvez porque tenho escrito poesia a minha vida inteira. Mais cedo ou mais tarde, tudo se torna um poema na minha cabeça. Vira um verso. A prosa poética em alemão, pode ser também devido à economia. Pois eu uso apenas as palavras que preciso para contar minhas histórias. Nada mais, como um poema denso e conciso, então uma prosa pode ser densa e poética.

LEONARDO: Você diz que quando você escreve, as palavras lentamente se tornam “forma e cor”. Você estudou na escola de cinema. Que relação existe entre sua prosa (ou poesia) com a estética cinematográfica?

AYEDA: De fato, a forma e cor, mas também som, luz e o clima que surge (que nem em um filme), também são muito importantes para mim quando escrevo. Talvez seja também porque muitas vezes as histórias são como um filme ancoradas na minha cabeça. Descrevo então as imagens com palavras. Muitas vezes vejo os detalhes. Como um plano aberto. Mas isso não é intencional. Eu muitas vezes presto atenção aos detalhes na vida cotidiana. Raramente descrevo uma grande paisagem. E a partir dessa perspectiva, a câmera imaginária está quase sempre perto da ação ou da pessoa.

LUCIANA: Você pretende lançar um livro esse ano? Quais são seus próximos projetos literários?

 AYEDA: No momento, estou trabalhando em vários projetos paralelos. Um deles é um romance chamado Sand und Zucker (Areia e Açúcar) que sairá em 2022 pela editora Hagebutte Verlag.

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Conversa realizada no projeto Migra (projetomigra.com) para assistir ao video: https://www.youtube.com/watch?v=MdXxhmBn1es&t=1238s

Tradução do alemão feita por Luciana Rangel

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A segunda pele
                                               Ayeda Alavie

Quando eu penso em liberdade, as primeiras imagens que me vêm em mente, são imagens do cativeiro. Talvez, por eu ter nascido e crescido em uma outra parte do mundo e em um outro tempo. Em uma época, em que se era castigado com o aprisionamento quem bebesse ou comesse algo em público no período de Quaresma. Em um país, onde há a prisão domiciliar.

Enquanto existirem privações existenciais da liberdade, não se pode pensar em níveis de liberdade mais elevados. Os retratos da prisão e do cativeiro são tão escuros e pesados que quase não deixam espaço possível para a luz e a leveza. As imagens da liberdade permanecem do lado de fora do muro. Inatingível. Para que se pense: a liberdade está em qualquer outro lugar que não aqui.

As proibições e a censura internalizam-se com o passar do tempo. Transformam-se em uma roupa apertadamente ajustada. Como uma única célula para o corpo e a mente. Tornam-se uma segunda pele que se leva para todo o lado. Com que se cresce. Que nunca se abandona. E com o tempo, esta segunda pele cola-se de tal forma que já não se pode tirar sem rasgar a própria pele natural.

Por isso, aceita-se voluntariamente esta segunda pele ao longo do tempo. Movimenta-se o mais cuidadosamente possível e de forma limitada, para não danificar a pele natural com movimentos livres. Para que a segunda pele, apertada, não se arrebente. Para que se mantenha o maior tempo possível escondido e encurvado nesta única célula. E para não atrair a atenção e acabar numa prisão maior e real, com ainda mais privações de movimento. Prisões com muros espessos, que se tornam ao longo do tempo, uma terceira pele.

Quando eu penso em liberdade na minha língua materna, o persa, eu penso frequentemente nesta poesia de Ahmad Schamlou:

 

احمد شاملو: از مرگ…

هرگز از مرگ نهراسيده ام…
اگرچه دستانش از ابتذال شكننده تر بود
هراس من -باري- همه از مردن در سرزميني ست…
كه مزد گوركن
از بهاي آزادي آدمي، افزون باشد…

 

Antes da morte

Eu nunca tive medo antes da morte

Apesar de suas mãos me parecerem aniquiladoras

Eu tenho apenas medo da morte em um país

onde o salário de um coveiro tem mais valor

que a liberdade de um ser humano

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traduzido por Luciana Rangel

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Luciana Rangel é jornalista e escritora e autora de Está (quase) tudo bem (Folhas de Relva Edições); Leonardo Tonus é professor de Letras da Universidade Sorbonne, em Paris, criador do projeto Migra e poeta, autor de Diários em mar aberto (Folhas de Relva Edições) entre outros livros.

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