* Por Luciene Guimarães *

Na mesma década em que nasceu a  escritora Annie Ernaux,  na Normandie, em 1940, que Marguerite Duras, nascida em 1914, começava a publicar sua obra. Em 1985, Duras vence o prêmio Goncourt, pela publicação de O amante. Em 2017, Annie Ernaux recebe o prêmio Marguerite Yourcenar pelo conjunto da sua obra. Bem que as duas escritoras não sejam contemporâneas e a obra de Duras possa se imbuir de um espírito transgressor, as duas escritoras se aproximam pela mesma tradição literária que as consagrou: escrever suas memórias.

Em três livros de Ernaux que chegaram às mãos do leitor, O lugar, Os anos e O acontecimento, (Editora Fósforo, os dois primeiros com tradução de Marília Garcia),  a narrativa da autora vai desenrolado um enorme novelo de um tempo linear, a memória subjetiva e familiar que se mesclam com a memória coletiva. Em O lugar, a história começa nos anos 20, e em Os anos, as memórias se desenrolam desde sua infância, na década de 40, até os anos 2000.

O lugar dessas memórias é justamente  a Normandia, origem de sua família, mas também o lugar que ficou para sempre na História, marcando o fim da Segunda Guerra. As crianças “guardavam na memória todas aquelas histórias”, casos contados pelos adultos, “época fabulosa – da qual entenderiam mais tarde a ordem dos acontecimentos, a Debacle, o Êxodo, a Ocupação, o Desembarque, a Vitória.” No dia em que ficou conhecido como “o dia D”, Annie Ernaux ainda era criança, mas anos mais tarde entendeu o que tudo aquilo significou. A Normandia é também o lugar de Marguerite Duras e que tanto nutriu sua obra e seu processo criativo. Também o lugar onde viveu e trabalhou, escrevendo e filmando, em Trouville, à beira mar, onde passava os verões.

A documentarista Michelle Porte, amiga pessoal de Marguerite Duras, publicou nos anos 70 um livro de entrevistas com a autora sobre os seus lugares, Les lieux de Marguerite Duras. Porte, a mesma que entrevistou Duras, publicou também Le vrai lieu, entrevista com Annie Ernaux. Ao aceitar o convite, como comenta no avant-propos, Ernaux diz estar convencida que o lugar geográfico e social, onde nascemos e vivemos, oferece aos textos escritos, não uma explicação, mas um cenário de fundo da realidade, onde mais ou menos eles são enraizados. Se para Proust, a vida é a própria literatura, para Ernaux, como ela mesma diz a Porte, “a literatura é ou deveria ser a própria iluminação ou a opacidade da vida”.

“A memória dos outros fazia com que fizéssemos parte do mundo”  

“Milhares de palavras vão sumir de repente, palavras que serviram para nomear coisas, rostos de pessoas, ações e sentimentos. Palavras que serviram para organizar o mundo, disparar o coração e umedecer o sexo (…) Tudo vai se apagar em um segundo, o vocabulário acumulado, do berço ao leito final, será eliminado. Restará somente o silêncio, sem palavra alguma para nomeá-lo.”

Em Ernaux, a palavra dá sentido ao mundo, escrever é uma tentativa quase desesperada de agarrar o tempo fugidio da memória familiar, que escapará com os anos e que está atrelada à memória coletiva, “assim como milhares de imagens que estavam na cabeça dos avós mortos há meio século e dos pais também mortos.” É na ânsia de contar essas memórias, e que podem desaparecer, a familiar, a coletiva , onde o lugar da autora se afirma, o que motiva o narrador de Os anos.  Só a escrita pode guardar o que é contado, como se paralisasse a ampulheta do tempo, mas também como se pudesse recuperar o tempo que se esvaiu. “Assim como o desejo sexual, a memória nunca se interrompe. Ela equipara mortos e vivos, pessoas reais e imaginárias, sonhos e história.” O que revela a voz do narrador, que o vivido pode ser organizado numa narrativa.

Em O lugar, em que a autora narra a vida do próprio pai; o avô é também lembrado: “Sempre que me falavam do meu avô, começavam dizendo que ele ‘não sabia ler nem escrever’, como se sua vida e sua personalidade não pudessem ser compreendidas sem esta informação básica.”

Marguerite Duras trataria a memória de forma diferente, pois em Duras, a narrativa da memória é fragmentada e atravessada pelo esquecimento, pelo silêncio, pela dor, pelo trauma, como um testemunho do seu tempo. Já para Annie Ernaux, essa memória se desenrola de forma linear, o tempo é um guia que se detém à narrativa. A história coletiva não se desvencilha da familiar, nem quando são as memórias infantis que prevalecem. Ela tarz crianças que escutam os assuntos da vida dos adultos, na mesa de jantar, por exemplo. “A memória dos outros fazia com que também fizéssemos parte do mundo”, diz o narrador. É assim que o texto de Os anos e O lugar, tecido pelas memórias, é construído. Para o narrador de Os anos, a história familiar e a história coletiva são uma única coisa. Através dos anos, fatos, objetos, eventos da cena francesa do pós-guerra emerge: “A França era imensa e formada por populações que se diferenciavam de acordo com as comidas e os modos de falar. Em julho, os ciclistas do Tour de France atravessavam o país inteiro e nós acompanhávamos o percurso no mapa Michelin preso à parede da cozinha.” À medida que o fio se estende na evolução dos acontecimentos, outras imagens surgem, o desalento da guerra: “Em velhos cartazes, a imagem em três por quatro do general Charles de Gaulle usando um quepe, com o olhar perdido.”

Se em Duras, é através da descrição de uma fotografia que o narrador de O amante começa a desvelar o passado, da mesma forma, em Ernaux, o narrador de Os anos, se vale de fotografias antigas para contar memórias. Annie Ernaux, muito provavelmente leitora de Duras, revela entre as camadas do palimpsesto da escrita, sua influência. Eis onde os processos criativos se encontram. Para Marília Garcia, tradutora arrebatada pela obra de Ernaux, tanto Annie Ernaux quanto Marguerite Duras fazem parte de uma mesma tradição literária, mesma fonte onde bebeu também Proust. Memória involuntária proustiana, memória oscilando entre esquecimento e lembrança durassiana e a memória linear de Ernaux, são modalidades que se divergem. Entretanto, a memória linear de Ernaux evoca também o gênero de Montaigne, o ensaio, como lembra Marília Garcia. Assim, o leitor aprende que nos anos 70 a influência dos anúncios publicitários criava uma sociedade cada vez mais adepta ao consumismo. A sociedade agora tinha um nome, “sociedade de consumo”. Era um fato sem discussão, uma certeza que, gostando ou detestando, não tinha mais volta. “O aumento do preço do petróleo deixava a todos atônitos. O clima de consumo estava no ar e havia uma apropriação das coisas e dos bens. Comprávamos uma geladeira duas portas, um Renault R5 no impulso, uma semana no Club Hôtel em Flaine, um studio em Grande-Motte.” Em contrapartida, os ideais de maio 68 impregnaram toda a geração jovem, o feminismo e a conquista do aborto viraram bandeira de protesto pela emancipação feminina. Até que ponto maio de 68 – que ela tem a impressão de ter perdido, pois a vida já estava estabelecida demais – está na origem da pergunta que a deixa sossegada? “Será que eu poderia ser mais feliz se levasse outra vida?” Começa a imaginar a si própria fora da situação conjugal e da família.

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A seguir, entrevista com Marília Garcia, tradutora e também poeta. Depois de traduzir O lugar e Os anos, ela trabalha na tradução de A vergonha , que também sai pela Fósforo.

Como foi ou está sendo sua relação com a obra de Annie Ernaux? Antes de traduzir, você já era leitora da autora? Ela era inédita no Brasil? Descobri Annie Ernaux através da tradução, a partir do convite da editora, e a autora já havia sido traduzida, pela editora Objetiva, nos anos 90, mas apenas um livro, A paixão simples. A narrativa de Ernaux me cativou de imediato. O lugar, livro que em ela conta a vida familiar, a história do pai  me comoveu, uma tradução que ao terminar, não pude conter as lágrimas. Por uma questão de agenda, não pude me dedicar à tradução de O acontecimento, [traduzido por Isadora Pontes], livro em que o tema central é o aborto nos anos 60, época em que ainda era proibido na França, um livro que foi adaptado para o cinema [filme de Audrey Diwan, Leão de Ouro no Festival de Veneza] mas estou trabalhando na tradução de A vergonha, o próximo a ser publicado pela Fósforo.

O que você tem a dizer do processo tradutório? Alguma dificuldade no texto de Ernaux? O processo tradutório exige sempre uma releitura, uma “segunda mão”, e esse processo tradutório, pelo menos o processo material, pode ser comparado a uma pintura, que inacabada, precisa de retoques. Como o texto de Annie Ernaux  é impregnado de muitas referências culturais, da cultura francesa, há sempre um cuidado com algumas expressões que aparecem e com as próprias referências. Mas as várias ferramentas de pesquisa que a própria Web proporciona, ajuda bastante.

Há alguma semelhança entre Marguerite Duras e Annie Ernaux. Você crê que Ernaux sofreu influência ou era leitora de Duras? Certamente. É possível que Annie Ernaux tenha conhecido bem a obra de Duras, ou mesmo que ela não tenha lido tudo, elas compartilham da mesma tradição literária.

Você acha que “traduzir é perder”, ou seja que ao verter o texto para outra língua, há algo que se perde? Como poeta, traduzir prosa e poesia impõe diferentes procedimentos? É uma boa pergunta… Talvez haja uma perda porque é impossível fidelidade ao texto de partida, mas há também ganhos, que talvez estejam na recepção da obra, pois o leitor ganha o que não pôde ler em outra língua. Quanto à traduzir prosa e poesia, há uma forma,  ritmo, rima, métrica que se impõe no poema, eis o  desafio.

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Foto de Annie Ernaux: Catherine Hélie (c) Editions Gallimard 

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