* Por Ronaldo Cagiano *

Asas de Saturno (Ed. Exclamação, Porto, 2020/Ed. Circuito, Rio, 2020), novo livro da escritora, professora, crítica e ensaísta portuguesa (também editora da revista Caliban) Maria João Cantinho, é uma narrativa que transcende as fronteiras do gênero, pois para além do romance, projetam-se deambulações filosóficas e questionamentos que abarcam os territórios da ética e da estética.

Em sua imersão reflexiva, Asas de Saturno aprofunda os dilemas existenciais de personagens em confronto com sua experiência vivencia, suas realidades interiores e seus fluxos emocionais, donde originam-se os conflitos que vão nortear os caminhos que se cruzam.

No vórtice das relações que envolvem os protagonistas – Florimundo, Gabriel, Clara, Margarida, Pedro – há uma busca de sentido não apenas para as vidas em contágio, mas também para a arte como emuladora de sensações e expansões oníricas, por meio da qual há um desejo permanente de catarse, de desvelamento do que está oculto, de exorcismo dos fantasmas, obsessões, inquietações e tormentos do ser, este muitas vezes perdido nos labirintos de suas perplexidades e debacles psicológicas ou no enfrentamento das pressões sociais e amarras coletivas.

Filho der Clara e Gabriel, Florimundo, ainda criança transita num mundo em suspensão, premido por uma misantropia e uma expressiva sensibilidade, características que vão singularizá-lo, ao mesmo tempo em que provoca estranhamento e insularidade, muitas vezes inquinando seu comportamento divorciado do que exige a precária normalidade imposta pelos códigos sociais. Seu olhar divergente e extremamente sintonizado com uma realidade não contagiada pelas mazelas do mundo o aparta dos cenários convencionais, convertendo-o num observador privilegiado da natureza e das circunstâncias, diante das quais a ilusão e a ternura o impedem de aferir a malícia e crueldade em seu entorno.

Na órbita dos acontecimentos metaforizam-se cenários alienados da crueza contemporânea, conformados pela arte e pela musicalidade, à qual se dedica em idílico e precoce isolamento (“afundando-se no mar e numa solidão líquida”). Tudo ocorre na esteira de uma relação com o pai ausente, um autor obcecado por concluir uma obra (“De espelho em espelho”), mas que o suicídio interrompeu a simbiose familiar, instaurando um rigoroso silêncio na sua vida, algo que será especular em toda a sua trajetória, projetando-se na figura enigmática de um homem sem rosto a chafurdar-lhe a memória e deflagrar viagens de intensas projeções metafísicas. Como já assinalou Miguel Real (Jornal de Letras, nº 1341), “é um romance de personagens, todas elas fortes, com percursos de vida marcantes, extraordinários”, cuja dimensão humana e escrutinatória provoca abre-se a múltiplas leituras e significados.

No cerne de Asas de Saturno emergem discussões em torno dos limites entre a vida e a morte, dos perigos do mundo, do tempo (que Saturno/Chronos representam como apetite devorador), como eterno escultor (como bem o definiu Marguerite Yourcernar), que a tudo preside e provoca metamorfoses e delimita a fugacidade da glória e a transitoriedade do infortúnio, dos confrontos, paradoxos e contradições que desestabilizam o indivíduo no seu instável e abissal caminhar. Florimundo simboliza a busca edênica de um ideal de sobrevivência num tempo e num mundo em constante desassossego.

Com Asas de Saturno, em sua concepção formal híbrida (pois aqui há história, enredo, ensaio e crítica, com o amálgama da intertextualidade e outras sutilezas estilísticas ), Maria João Cantinho, evocando os mito que nos compõem, projeta uma escrita densa e tensa, mas intensamente delicada e poética sobre o que é realmente essencial e profundo na natureza humana, pois emula uma sólida investigação sobre valores.

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Leia trechos:

“O instante fende-se e Florimundo acede a um qualquer ponto obscuro de si mesmo. Por momentos é arrastado até ao passado. Ao tempo em que o vento era um murmúrio, soprando nas dunas da sua infância, e ao longe via-se a casa. Esse tempo escava-lhe na pele uma dor vaga, a cicatriz reabrindo-se. Descontínua, a torrente de imagens flui livremente, indo e vindo numa lentidão aquática. O som o violino perde-se na dobra do tempo, da carne, faz-se voz na noite que desaba. É este saber que o move e o transporta para um lugar que nada alcança, neste desvão de ser e de escombros.

(…)

Florimundo sabia que tinha trocado a vida por um ideal. Talvez a mãe tivesse culpa nisso, mas ele não seria capaz de a culpar pelo seu próprio isolamento, pela incapacidade de se relacionar com as raparigas, pela timidez que o isolava dos outros. Fora habituado desde criança a ter objetivos, deixando tudo o mais de lado. O dinheiro que havia era para as coisas essenciais e sobretudo para a aprendizagem da música.”

 

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Ronaldo Cagiano é escritor e crítico brasileiro; vive em Portugal.

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