* Por Itamar Vieira Junior *

Os direitos políticos dos cidadãos foram suspensos. Disseram que seria por pouco tempo e com o objetivo de manter a ordem. Logo a Constituição se tornou desnecessária e foi substituída pela Bíblia, mais adequada aos nossos tempos. No Velho Testamento há códigos e leis plenamente aplicáveis à vida em sociedade. As mulheres devem obediência aos seus maridos, são cidadãs de segunda classe. O livre pensamento passou a ser visto como doutrinação e foi abolido das escolas com a criação de conselhos de ética que zelam pela educação moral. Mulheres estéreis, homossexuais, dissidentes políticos, feministas e ativistas de direitos humanos são condenados a trabalhos forçados. Se irrecuperáveis, têm o mesmo destino dos criminosos de toda a ordem: o Muro. Fuzilados ou enforcados, são pendurados ao longo da construção para que sirvam de exemplo a todos. As mulheres férteis são propriedades do Estado, e servem ao Governo para benefício do País e de seus comandantes. Elas devem gerar os novos cidadãos de um país unido, acima de todos. E Deus está acima de tudo, como no livro sagrado.

O trecho acima poderia ser de uma notícia sobre um país que escolheu governantes ultradireitistas, substituindo a Constituição pela Bíblia – ou apenas deixando que a Bíblia norteasse os princípios de uma Constituição –, ou uma sinopse rudimentar da obra O conto da aia, de Margaret Atwood. A narrativa de Atwood se passa num país convertido num Estado teocrático e totalitário, a República de Gilead, antigo Estados Unidos da América.

Não foi por menos que o livro, publicado originalmente em 1985, voltou ao topo das listas dos mais vendidos após a eleição de Donald Trump para a presidência dos EUA, e permanece assim até hoje. Por aqui também: está entre os dez livros de ficção mais vendidos das últimas semanas. O universo distópico da obra parece não ser tão distópico assim. Numa entrevista recente, Atwood, que era convidada da Feira Internacional do Livro de Havana em 2017, disse que na época de seu lançamento a acusaram de demasiado pessimismo e melodrama. Ela respondeu que não narrou nada que a humanidade não tivesse praticado em algum momento da sua história. Ou seja, somos capazes de reproduzir o horror a qualquer tempo, é o que a literatura nos diz.

Assim como em O conto da aia, clássicos da literatura universal tiveram suas vendas aumentadas na esteira da onda conservadora que parece varrer o Ocidente. 1984, de George Orwell, Admirável mundo novo, de Aldous Huxley, e Fahrenheit 451, de Ray Bradbury são outras obras que figuram na lista dos mais vendidos.

A epidemia de cegueira – a “treva branca” – de Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, parece ser a metáfora que melhor se ajusta ao momento que vivemos. Quando a multidão de cegos precisa ser recolhida a uma quarentena, vemos o resto de humanidade que guardam escapar. Ao perceber que não poderiam mais ser vigiados pela visão do outro, as personagens liberam toda a violência contida pelos códigos sociais. O estupro, a tortura e o assassinato são banalizados. O consumo voraz e o desejo de ascender e dominar o outro são os motores para que as personagens mergulhem no caos.

Quantos fecharam os seus olhos nas últimas eleições para o discurso de aniquilação do outro? Nem mesmo expressões como “banir a oposição”, ou outras de natureza racista, sexista e homofóbica foram capazes de sensibilizar os eleitores para uma saída que não nos custasse o risco à nossa própria humanidade. A certa altura do romance lemos que “dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos”.

Mas é nesse ambiente de extrema violência que emerge a solidariedade. Muitas personagens, para livrarem a si e aos outros, passam a se ajudar na esperança de atravessarem vivos a quarentena. Nesse ponto, também, o romance de Saramago se encontra com O conto da aia.As aiasue vivem sem liberdade, descobrem a sororidade entre si: um mundo por baixo da ordem vigente, onde trocam informações e apoio para conseguirem sobreviver à opressão. A literatura, ao se voltar para análise existencial antes mesmo da filosofia – a filosofia existencialista – ou das ciências sociais, se antecipa no tempo e aponta o que o homem pode encontrar à sua frente quando abre mãos de valores caros à nossa humanidade, caros à nossa vida em sociedade. O universo distópico é uma alegoria que assusta, mas é uma linguagem que ao mesmo tempo indica os caminhos que podemos trilhar para reencontrar o equilíbrio entre nossas diferenças.

O que fica de esperança, tanto na obra de Saramago quanto na de Atwood, é que, talvez, na adversidade que se avizinha, sejamos capazes de refundar uma sociedade mais humana e socialmente justa.

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Itamar Vieira Junior nasceu em Salvador, Bahia. É autor dos livros de contos Dias (Caramurê, 2012) e A oração do carrasco (Mondrongo, 2017). É o ganhador do Prêmio Leya 2018 com o romance inédito Torto arado

 

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