* Por Luciene Guimarães *

Conversei com a escritora Andrea del Fuego, um papo sobre a qual ela me diz  ter sido proveitoso e inspirador. Andrea discute seu processo criativo e fala do seu último livro A pediatra (Companhia das Letras, 2021). Nesse romance, ela cria uma personagem tão verossímil que o leitor se vê num consultório, lidando com uma médica nada convencional. A personagem Cecília, pediatra que não ama crianças nem a medicina – o faz por conveniência -, vive de forma cartesiana, protegida por uma máscara social em que o estetoscópio garante sua postura austera, corroborada pela ciência, mas sem envolvimento humano e nenhuma empatia com os pacientes. Adaptada às convenções, com autonomia social, mas escondendo fragilidades, suas atitudes tocam valores éticos, morais sem que ela se dê conta. O fato é que Cecília é uma médica solitária e adoecida, bem à maneira do que diz o filósofo Gilles Deleuze em Crítica e clínica: “O mundo é o conjunto dos sintomas cuja doença se confunde com o homem.”

Andrea também fala aqui da sua relação com a literatura no dia a dia e com o universo médico que inspirou a personagem.

Em seu livro Malaquias, romance autobiográfico que venceu o prêmio Saramago, em 2011, lemos o seguinte trecho: “Um gato esticou as pernas, as paredes se retesaram. A pressão do ar achatou os corpos contra o colchão, a casa inteira se acendeu e apagou, uma lâmpada no meio do vale. O trovão soou comprido alcançar o lado oposto da serra. Debaixo da construção a terra, de carga negativa, recebeu o raio positivo de uma nuvem vertical. As cargas invisíveis se encontraram na casa dos Malaquias. O coração do casal fazia a sístole, momento em que a aorta se fecha. Com a via contraída, a descarga não pôde atravessá-los e aterrar-se. Na passagem do raio, pai e mãe inspiraram, o músculo cardíaco recebeu o abalo sem escoamento. O clarão aqueceu o sangue em níveis solares e pôs-se a queimar toda a árvore circulatória. Um incêndio interno que fez o coração, cavalo que corre por si, terminar a corrida em Donana e Adolfo.”

Essa maneira de descrever a morte, quando seus avós são atingidos por um raio, essa narrativa evoca um laudo técnico. Você escreve como se consultando um manual de medicina? Tão interessante essa pergunta que também é, ao mesmo tempo, um diagnóstico certeiro. Um manual de medicina supõe transmissão de um conhecimento do corpo, do funcionamento da máquina que nos abriga e escapa. Nos livros, em Os Malaquias principalmente, minha investigação é pelo mistério da engrenagem, o que há de selvagem no corpo, na natureza e num suposto progresso. O que há de naturalmente tecnológico no corpo no sentido de ser ele um corpo programável e programado. A personagem que melhor encarna isso é a Geraldina, uma mulher que morre, mas uma molécula de seu corpo não. Esta molécula se detém na nuca de outro personagem e depois vai parar nas águas, estas que gerarão eletricidade na comunidade local.

Como foi ou está sendo a recepção de A pediatra, livro que aborda o perfil de uma médica sem nenhuma empatia com o paciente? A sociedade romantiza o médico. Aliás, por que escolher uma médica pediatra como protagonista? A recepção de A pediatra está me surpreendendo. Sempre falamos que há ondas com certos livros, mas acredito que a onda é sempre dos leitores, a recepção é como um solo para a aterrissagem das obras ou temas. Algo talvez do zeitgeist influencie a percepção, uma série de fatores constroem a porosidade dos leitores. A escolha pela área da medicina e por uma protagonista mulher já fermentava aqui enquanto escrevia, e ainda escrevo, um romance cujo protagonista é de um homem bom. Foi durante este processo que resolvi rabiscar, por alguns meses, a fala de uma pediatra. Assim que encontrei seu tom, a escrita foi fluida e intensa.

Cecília, personagem crua e desumana, é realismo puro. Ela dessacraliza não só a figura do médico, como a da maternidade. Ela se aproxima quase de um personagem kafkiano, absurdo, ou de Camus, indiferente e patológico. Você quis criar uma personagem paradoxal, uma médica “doente”, sem nenhuma empatia e vivendo para si mesma?  Você é leitora de Dostoievski? Sou leitora de Dostoievski e de Kafka, claro. Gosto quando o realismo alcança o objetivo do realismo mágico sem encostar sequer numa metáfora. É como fotografar a natureza por ela mesma, mesmo contando com a distorção da lente. Observação detida do que é encarnado justamente para evidenciar seu absurdo.

Ninguém notava que eu tinha pouca vocação e paciência para ser médica, a boa formação garantia que eu não fosse processada, fazia bem-feito o feijão com arroz, procedimentos que qualquer pediatra faz escondiam minha inaptidão. Meu caso é comum, estudei medicina desapaixonada, com o pai no leme. Não é diferente de quem cuida de vacas porque de sua janela era o que havia, festejando o fato de que não era mais preciso caçar, apenas manter o gado. Meu pai era endocrinologista pediátrico e a área da diabetes infantil crescia, proprietário de um andar num edifício comercial, eu podia atender numa das salas.”  

Esse trecho diz bem quem é a personagem, que tem consciência que fez o que não queria na vida, por comodismo e facilidades. Um personagem burguês que jamais teve a zona de conforto abalada? Cecília só não causa mais repulsa porque ela tem angústia, a mãe da consciência. Ela tem fibromialgia, a histeria contemporânea para alguns. A angústia dela está camuflada em sua imunidade social, financeira e sexual. Cecília é uma médica doente, no entanto, uma paciente que nunca é atendida porque sequer leva a sério seus próprios sintomas. Diante do pai médico, e probo, ela jamais se assumirá como uma paciente. O pai e o mundo não poderão testemunhar sua derrota. E para não ser derrotada, ela não poderá amar, ela foge o tempo todo do amor e do cuidado.

Como é esse universo clínico, médico do livro, é uma relação familiar para você? Sou hipocondríaca, a pesquisa para o livro já estava feita em vida, por escolha doméstica e diária. Ler os papers sobre diabete infantil e pericardite para o livro foi um deleite, é como saber a senha do cofre.

Italo Calvino e Umberto Eco mencionam a demora e a rapidez na escrita. O proustiano é demorado, explorando sensações, memória. O texto rápido é objetivo, como um conto policial ou mesmo a fábula. O seu texto é “rápido”, vai direito ao assunto e tem capítulos curtos. Esse estilo é proposital, pensado? Você busca estratégias, técnicas narrativas? Esse estilo é o meu limite como escritora, não tenho fôlego para a escrita de longos romances, quanto maior, menor minha sensação de controle do ritmo. Vejo o romance ou a novela, na minha produção, como algo a ser lido como um bloco, como a leitura de um conto. A cada livro, busco experimentar o que ainda não fiz em processos anteriores. Por vezes usando o realismo mágico, a prosa poética, outras vezes enveredando pelo realismo e no texto in media res, também com a bola colada ao chão, sem procurar o sublime e o poético. Já penso em voltar ao romance em andamento há cinco anos levantando questões que estavam em Os Malaquias, por exemplo. Me interessa estar como numa eterna oficina de escrita.

Como é seu processo de escrita ou criador: você também tem o seu bloquinho de notas numa emergência de uma ideia ou de um surto criativo? O processo criativo passa por uma angústia? Processo criativo é uma espécie de crise, mas colocada numa espécie de casinha de cachorro, no sentido do controle, ou melhor, de um falso controle. Não tenho a menor dúvida, a escrita é selvagem como o corpo, ela ultrapassa sempre a linha de contenção. Por isso é impossível largar a escrita depois de vivenciar seus meandros. Eu estou sempre em processo de escrita, mesmo que não esteja escrevendo, tudo vai convergir para o papel assim que me puser em escrita. Não se trata de um texto sobre si, mas sobre o mundo filtrado por minhas células, minhas e as dos outros, pois acredito numa abertura para o outro na escrita.

Como é sua rotina com a literatura, ou sua vida literária quando não está escrevendo? O contato é constante? O contato é constante, se não estou escrevendo, estou anotando ou gravando áudios. Deixo sempre vagar o pensamento e o olhar pelas coisas, pois sei que estará nisso o meu repertório.

Você se dedica a qual projeto agora? Quer falar um pouco sobre ele? Estou na construção de um romance há mais de cinco anos, é sobre um artista marcial sem talento. Filho de uma cuidadora de idosos, filho único que se envolve com as artes marciais e a religiosidade. Estou há anos em busca da voz desse homem, o livro está pronto, mas não está no fim. Há muito o que fazer.

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Luciene Guimarães é tradutora e especialista da obra de Marguerite Duras. Doutora em Littérature et arts de la scène et de l’écran pela Université Laval, (Canada), com uma tese desenvolvida também sobre a literatura e o cinema de Marguerite Duras.

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