* Por Daniel Manzoni de Almeida *

Nas últimas semanas, devido a uma audiência pífia, a produção do BBB 2022, da Rede Globo, decidiu nos atacar com a construção de uma narrativa maldosa, utilizando corpos e subjetividades LGBT+. Dentro da casa “mais vigiada do Brasil”, acontece o suposto envolvimento entre os participantes Vinícius e Elieser. O primeiro é um homossexual assumido, o segundo se declara heterossexual. Entretanto, como forma de jogo, Elieser alimenta em Vinícius a possibilidade de um romance, fornecendo migalhas de afetos e insinuações que não passam de um jogo de poder, novamente, da heteronormatividade sobre os corpos LGBT+.

Pior do que esse diagnóstico é o jogo sujo que a emissora tem feito com o público com a já cansada história do fetiche nutrido do homem gay pelo homem hétero e a esperança de que esse “amor” seja grande, supere preconceitos e se realize num “felizes para sempre”. Mais maldosa ainda é a intenção de brincar com os sentimentos de pessoas LGBT+, trazendo essa discussão à tona quando já conhecemos outras liberdades de amor e relacionamento via direitos civis conquistados. O que trago à baila é que novamente nossos corpos, sentimentos e narrativas estão à venda, sendo livremente comercializados por meio de discursos falaciosos de inclusão e representatividade, deixando de lado algo importantíssimo que está em jogo e que não se tem discutido: o mal da tensão sentimental e de existência, que é um corpo LGBT+ amar em uma sociedade preconceituosa como a brasileira. Explico-me melhor.

Quando se é da LGBT+, convivemos com tensões diárias que alguém do universo heterossexual não consegue dimensionar. Algumas mais palatáveis do que outras, porém não menores em fazer o coração acelerar ou palpitar diante da situação. Uma delas é quando estamos no jogo de conhecer alguém, aquele momento em que os olhares se cruzam e instantaneamente nos vem à cabeça se há possibilidade de que aquilo seja reciproco ou não. Falo do instante – e do lugar de um homem gay e cisgênero – quando, ao olhar na rua ou em qualquer outro ambiente de forma interessada para outro homem, ele se faz a pergunta: “Ele também tem o mesmo desejo que eu?”. Aparentemente isso é simples e banal, mas não. Um encontro entre pessoas do mesmo sexo requer desejo mútuo, um universo de experiências homossexuais compartilhadas, e nem sempre isso é identificado em um primeiro momento, um primeiro olhar, uma primeira conversa, porém às vezes só mesmo depois de um certo convívio. A tensão sempre existirá.

Não é um encontro simples em que os desejos mútuos, românticos ou sexuais já estão dados como na heterossexualidade. Para pessoas LGBT+, sempre há o medo e a tensão de que aquele desejo não seja correspondido ou que haja um engano da parte do outro (ou até mesmo nosso), de desejar algo que não é real. E claro, como consequência desse engano, surge o medo de uma reação violenta – simbólica quando de muita sorte – ou física, como a morte que nos é iminente. Basta um olhar de desejo de um homem gay para outro que não seja gay para que o perigo de morte esteja instalado, haja vista a tamanha homofobia recorrente nas ruas. Nesse sentido, para um LGBT+ sempre paira uma nuvem do mal sobre nossas cabeças: a tensão das possibilidades. O mundo, como no caso da Rede Globo, se aproveita da nossa ambição de inclusão e comercializa descaradamente nossos desejos como entretenimento barato, esvaziado de discussão e significado em uma indústria cultural descarada, lembrando a teoria de Theodor Adorno.

Por outro lado, há resistências à comercialização das nossas subjetividades e corpos, que nos impulsiona a pensar as questões do universo LGBT+. A literatura é esse campo de levante, de insurgência e denúncia daquilo que é alvo de silenciamento ou pasteurização para ser comercializado como “Inclusão & Diversidade”. É sobre essa tensão das possibilidades que o romance Porque era ele, porque era Eu, de Josh Ribeiro (Editora Sinna em 2021) nos convida à reflexão. Nele, Ribeiro narra a história de Reinaldo e Marcelo em um cenário cotidiano no Amapá. Reinaldo é um servidor público que tem um sítio afastado da cidade e que recebe a visita inesperada de Marcelo, um cineasta forasteiro que está fazendo um trabalho sobre pedofilia naquela região do país. Não é surpresa para o leitor que desse encontro nascerá um envolvimento entre esses dois homens. Reinaldo é a personagem que tem mais clareza sobre sua sexualidade, entretanto Marcelo é aquele que tem a vida e a sexualidade colocada em questionamento diante desse encontro paradisíaco, em um sítio deliciosamente descrito no Amapá. À primeira vista, para um leitor mais crítico e mais familiarizado com as produções de literatura LGBT+, “Porque era ele, porque era Eu” soa como mais uma história clichê de descoberta da bissexualidade de um homem padrão e com histórico heterossexual, que alimenta o velho fetiche da “arrancada” do homem heterossexual, pai de família e com esposa, para a homossexualidade. Ledo engano em se tratando da trama escrita por Ribeiro. Nela, o autor não está preocupado em brincar com essa fantasia esquisita de tentar contar mais uma história em que a sexualidade é fluida, mas de expor o mal provocado pela tensão que paira sobre nossas cabeças e nos faz pensar na pergunta: o que é que eu sinto?

As personagens Reinado e Marcelo não são inocentes no romance. Há uma consciência interna sobre seus desejos sexuais e afetivos. A dificuldade colocada por Ribeiro é em como essas personagens podem expressar esse desejo um para o outro, pois não há clareza se a exposição desses desejos e sentimentos virá à toa sem manifestações de violências. As cenas de sexo são exploradas nesse sentido e não excitam gratuitamente na tentativa de surripiar do(a) leitor(a) apenas desejos puros, mas conduzem à reflexão acerca da incompreensão que as personagens vivem sobre a relação que querem ou que podem viver.

O ponto alto do romance é a tensão colocada em “Porque era ele, porque era Eu” que passa a ser a protagonista do livro de Josh Ribeiro e nos impulsiona a questionar como nossa existência e liberdade de amar têm sido codificadas e segregadas em guetos (agora eletrônicos por aplicativos) e não a plena liberdade de existências já dadas. Até quando iremos permitir que nossos corpos sejam utilizados para discussões esvaziadas? Em conclusão, sugiro que o envolvimento de Reinaldo e Marcelo construído por Ribeiro pode ser um modelo interessante de pensarmos a superação da fetichização dos desejos dos corpos LGBT+ em polêmicas e baixarias como a do BBB 2022, para uma discussão mais ampla sobre nossos direitos de amor em liberdade. Encerro captando uma frase dita pela personagem Reinaldo, que sintetiza minha análise do romance de Ribeiro: “Só idiotas são seduzidos” (p. 72); e a questão que deixo é: será que já não é suficiente essa tentativa da heteronormatividade de tentar nos seduzir o tempo todo com essas narrativas já ultrapassadas? Chamo a atenção para o fato de que somos muito mais do que corpos a serem dominados e que estamos vendo nossos desejos mais uma vez serem sequestrados por um mundo heteronormativo que já nos surripiou demais.*

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Imagem: Reprodução\Globoplay

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Daniel Manzoni de Almeida é escritor, professor e doutor em Teoria Literária pela UNICAMP.

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