* Por Ronaldo Cagiano *

tocaste na minha vida, isto é, no único ponto

em que ainda estou vivo: a minha morte.

Henry Miller, Trópico de Câncer

 

Em  O privilégio dos mortos (Ed. Patuá, SP, 2019), Whisner Fraga contabiliza os passivos emocionais, as inquietações existenciais e os questionamentos filosóficos de um personagem emaranhado no cipoal de suas perplexidades, ao mesmo tempo em que faz o registro contundente das mazelas e contenciosos da própria história do País nas últimas décadas.

Tendo como pano de fundo a visita ao túmulo de Heitor, o amigo que conheceu nos tempos da faculdade e que morreu precocemente vitimado por um insidioso câncer pulmonar, esse personagem que não se identifica mas nomeia um repertório de angústias e contradições, enceta um denso e tenso diálogo com Helena. Numa interlocução visceral e reflexiva desnuda-se não apenas o percurso que o levará à mítica Tejuco, onde ele está sepultado, mas toda uma trajetória de vida que atravessa os diversos tempos e metamorfoses da cidade, da família, dos convívios e da recente experiência da vida nacional pré e pós-ditadura.

Em um mergulho profundo que emerge de sua relação conflituosa com o meio e os valores, um narrador angustiado vai deslindando perfis, escarafunchando ocorrências, especulando dilemas, dissecando crises, analisando momentos distintos da vida pessoal e coletiva, sempre com um tom de escrutínio do desconforto e do deslocamento que sempre o perseguiu, seja no cerne da família, da ambiência escolar, das relações sociais ou afetivas.

Ao chacoalhar o passado e remover os entulhos e contingências de um presente cada vez mais consumido pela fumaça de seu desalento, o narrador expõe as fragilidades, fissuras, desencontros e desencantos do ser que ao longo da vida tem presenciado um contínuo digladiar com seus contenciosos. No rol labiríntico das lembranças, os miasmas dos cadáveres psicológicos e os esqueletos dos fantasmas íntimos trazem à tona um tempo de perdas & danos, os estigmas vão sendo clarificados pelo farol das próprias experiências e num movimento simbiótico entre o ontem e o agora, o embate é contra a inegável transitoriedade (ou finitude) de tudo, a violência do tempo e a inexorabilidade da morte.

Eis uma obra, em todos os sentidos, que esmera os ritos de passagem, num contexto de deambulações com a confidente Helena, essa que torna-se o receptáculo do estranhamento do narrador, evocando seus trajetos e percalços, numa autêntica prosa sobre os dilaceramento do próprio indivíduo, da sociedade e do mundo de que é testemunho, em cuja vivência atalham-se tantos (e improváveis) caminhos, configurando-se num bildungsroman, que pormenoriza as etapas de desenvolvimento, em todos os seus aspectos, de um personagem no transcurso de suas metamorfoses.

Helena é o sustentáculo desse rio caudaloso – uma espécie de terceira margem do leito metafísico de um narrador submerso em suas memórias – por onde escoa-se um discurso poderoso de referências pessoais e coletivas, onde vai-se construindo um flerte enigmático, simbólico, muitas vezes delirante e permeado de idiossincrasias, em que o fluxo de consciência agiganta a potência emulatória e crítica do texto e que funcionam como expansão multifacética de um olhar sobre tantas fatalidades que transcorrem íntima ou exteriormente, no terreno pantanoso de realidades que não se revogam.

A morte de Heitor metaforiza um certo desejo de resgate daquela vida (ou de sonhos e utopias) não alcançados, de déficits morais e políticos, pois nos confrontos com um mundo distópico – e essa desordem se reflete na própria estrutura formal da obra, em sua arquitetura ousada e impactante – autor, narrador, personagens e cenários se interpenetram como num sistema de vasos comunicantes. Um trânsito em que predomina a tênue fronteira entre o delírio e a lucidez, a fantasia e a realidade, o tangível e o onírico, percebe-se uma dicotômica fusão do que se vive com o que se (re)inventa, como se o suprarreal viesse acudir cada um de seu naufrágio nesse tempo e nesse mundo cão.

Muitos são os referenciais estéticos, culturais e históricos do próprio autor que ganham força na comunicação que narrador e personagens vão desfiando nesse novelo de inquirições: da música à política, da literatura à cultura pop, do teatro aos universos científicos, ambientes, geografias, territórios, sensações e outros reflexos de uma variada bagagem humanista comparecem nesse romance de elevada carga metafórica e sofisticados recursos estilísticos, revelando uma sintaxe muito peculiar e um autor no pleno domínio de seu ofício.

                 O privilégio dos mortos é um livro intimista, escatológico e humano, pois aborda  o que sempre inquietou e desafia o homem desde o primeiro sopro: a nossa fragilidade e impotência diante do vazio e do insondável. Por isso, talvez tenham mais sorte (ou privilégio) os mortos, que não precisam passar novamente pelo corredor derradeiro das provações. Whisner nos incita com seu olhar cirúrgico a penetrar a carne débil de nossas convicções, e essa prosa refinada e inventiva, com uma linguagem de requintes formais e plasticidade verbal, lança farol sobre a vida, na esteira do que já nos disse Rui Nunes em sua obra  Grito: “Escrevo para continuar a morrer, para não acabar de morrer: eis a eternidade: a da voz que me usa e se distancia de mim.”

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Ronaldo Cagiano é escritor e crítico literário

 

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