“Por aqui não se passa sem que se sofra o calor do fogo!”

Glorinha Evangélica repetia essa frase sempre que podia. Nem sei se ela havia lido Dante, ou se fazia parte da estratégia de doutrinação dos pastores incutir algumas frases de efeito na mente vazia das ovelhas para elas terem o que repetir, e assim, caírem na armadilha da fé com mais requinte.

— Tem muita coisa que precisa ser queimada no fogo do inferno, precisa ser destruída, para ter o direito de existir! Vivemos no coração do inferno.

A vizinha por quem P nutria curiosidade e simpatia era um grilo falante: falava, falava, falava igual a um pobre na chuva. Na porta do bar, onde se encontraram por acaso, depois de mais uma sessão de sermão, P interveio:

— Ei Glorinha! Despertai! Você já ouviu que odiar as pessoas é como atear fogo à casa para livrar-se de um rato?

— É nada! Orai, irmã!

P achava piada àquela senhora que se vestia com saias longas e lenço no cabelo, comprido até a cintura. A pobre mulher vivia de um lado para o outro com uma bíblia debaixo do braço.

—  Amar é mais importante que odiar! Não sei se me explico bem?

Mas Glorinha era uma evangélica radical, daquelas em que a lavagem cerebral sofrida nos porões das igrejas havia surtido todo o efeito. Ademais, estava sempre pronta para converter uma “alma perdida”, e P era um alvo em potencial. Replicou:

—  Sabe o que eu aprendi? Que se não podemos arrancar uma página da vida, podemos jogar o livro inteiro no fogo.

P tentava dissuadi-la daqueles pensamentos, mesmo sabendo que era uma causa perdida:

— Tem um provérbio chinês que diz: “Nunca acendas um fogo que não possas apagar.” Percebe onde quero chegar?

— Filha de Deus, aleluia, e não sei? O demônio está a te tentar, pega na mão do nosso senhor Jesus, que ele te dá forças para não sucumbir nessa tentação, nessa miséria, nessas trevas!

— Nietzsche…

—  O quê? Repete. Está me xingando?

— Espera, não vá por aí, estou me referindo a Friedrich Nietzsche, “Não poríamos a mão no fogo pelas nossas opiniões: não temos assim tanta certeza delas. Mas talvez nos deixemos queimar para podermos ter e mudar as nossas opiniões.”

— Menina, cá entre nós, eu ganhei um vibrador da esposa do pastor. Eu nunca tinha visto aquilo. Que coisa fantástica! Estou quase a me tornar a rainha da siririca. Você já experimentou?

— Então existe uma mulher aí dentro dessas roupas cinzas ou escuras que você usa dia e noite? – provocou P, com um sorriso no rosto e uma vontade grande de ver aquela mulher se soltar.

— Deus todo poderoso que me perdoe a mim e a você também! Será que a esposa do santo pastor está a testar-me? Deus seja louvado e o capeta seja vencido!

A identificação de P com Glorinha se dava pelo fato de que P estava numa travessia, numa espécie de tomada de consciência da verdade e da liberdade, ou mais precisamente, da verdade que liberta, e identificava na outra muitas das amarras a que esteve presa até há pouco tempo.

— Às vezes eu olho para a P e a vejo tão distante, parece um pássaro cego – disse Glorinha, rosto quase colado no de P, as duas de pé.

— Eu estou aqui, na verdade estava a viajar, mas já estou de volta.

— Voltando ao que é sério – falou Glorinha – eu me fio é no meu Deus, em nome de Jesus Cristo, eu me seguro é nas orientações do meu pastor e bispo. O homem é um santo e a gente tem que saber reconhecer um homem de fé, para evitar ser enganado por um impostor. O que ele diz para mim e para os outros irmãos e irmãs são palavras de luz, são o caminho da verdade e da vida. Você devia ir lá na nossa igreja conhecer, comungar da nossa fé, você vai gostar, vai ver! – disse com uma entonação de confissão na voz, técnica de persuasão muito bem apreendida.

— Eu respeito você e sua religião, Glorinha! Também sou uma pessoa de fé! – tentou dizer P, mas foi surpreendia pela mão esquerda da crente colocada sobre sua cabeça.

Com movimentos coordenados, Glorinha levantou o braço direito na direção do céu, palma da mão aberta e, de olhos fechados, ela iniciou o que para muitas vistas de fora poderia ser um ritual de exorcismo:

— Não deixe seu fogo se apagar, faíscas por insubstituíveis faíscas, na troca perdida pelo que não é exato, pelo que ainda não é, e nunca há de ser. Não deixe o herói na sua alma se extinguir numa frustração pela vida que você mereceu e nunca pôde alcançar. O mundo que você deseja pode ser alcançado. Ele existe, é real. Não se asfixie. Não cometa suicídio. É possível. Esse dom é todo seu!

O fanatismo sempre deixava P constrangida. Por isso ela ficou quieta, a observar, até a mulher voltar de seu transe.

— É isso, amada que veio do estrangeiro, eu te abençoo em nome do Espírito Santo! – e fez o sinal da cruz na testa de P com a mão direita.

Enquanto isso, ela aproveitou e com a sua esquerda segurou na mão direita de P. Mas aí algo deu errado.

Quando os olhos de Glorinha se fixaram nas mãos translúcidas e finas de P, a evangélica fez um sinal de desaprovação, mas não se conteve:

— A mão queimada ensina melhor. Depois disso o conselho sobre o fogo chega ao coração.

H, que havia entrado no bar para comprar justamente um isqueiro, ao sair do estabelecimento se deparou com as duas mulheres de mãos dadas e achou bastante estranha aquela frase que ouviu. Ficou mesmo aturdido.

Ao vê-lo, Glorinha lembrou-se que tinha pressa, e olhando bem no fundo dos olhos de P, falou:

— Olha amada, hoje lá pelas dezoito horas, hora do ângelus, vai ter um culto diferenciado lá no Cais do Alagado. Vai lá e leva seu amiguinho – e quando disse assim, tornou a olhar para H, que a fitava sério. – E agora me dê sua licença, deixa eu ir, que tenho que passar antes na FEBEM e dar um salve, quero dizer, um beijo e um abraço, nos meus filhos. Deus proteja e guie a senhorita e o senhorito, amém, aleluia!

De braços estendidos para frente, Glorinha Evangélica saiu caminhando com dificuldades, consequência das varizes. Era uma figura frágil, com um rosto sem vida, com os ossos fracos.

— O que ela queria com você? – perguntou H.

— Não consegui entender muita coisa! Ela convidou-nos para ir ao Cais do Alagado daqui a pouco. Fiquei curioso para ver o que ela e sua gente de bem é capaz. Parece que os lobos com pele de cordeirinhos da igreja dela estão planejando uma “ação de purificação” contra os infiéis. Me dá o maior bode só de pensar nesses “cidadãos de bem”. Vamos embora daqui! Fiquei irritada! Mas uma coisa eu gostei de saber: ela me contou que usa um vibrador quase todos os dias!

P saiu na frente, com um sorriso insinuado no rosto, e puxou H pela mão esquerda, que a olhava com um semblante de quem gostava de saber mais dessas intimidades onde só há proibições. Seguiram na direção contrária ao caminho em que havia ido a vizinha crente.

Levantou a bola, H estava sempre pronto para tentar o arremate:

— Ponha fogo no seu sermão ou ponha seu sermão no fogo!

O calor era grande e a brisa que soprou por entre os dois provocou um arrepio na espinha de cada um.

Duas esquinas à frente, os dois passaram próximo de um parque de diversões onde uma roda gigante iluminada fazia seus movimentos rotatórios. Um olhou para o outro, sincronia pura, como se estivessem a imaginar a mesma cena: o mundo está girando, então é como se tudo estivesse seguindo um sentido definido pela roda. O risco de pular fora com a coisa em movimento é grande, tanto quanto permanecer naquele movimento insano.

De vez em quando H entrava em órbita e, nessas ocasiões, quase tudo que falava parecia premonição:

— Se você quiser ir para o cais, eu vou consigo, vou junto. Mas é bom a gente ir preparado, porque o ar está carregado!

— Então vamos! – respondeu sem titubear P.

Por uns segundos ela esperou que ele dissesse o contrário, algo como “vamos para casa, vamos cuidar um do outro”, mas no ímpeto, acabou achando melhor mostrar que nada temia. A curiosidade mata, dizia um antigo ditado.

O Cais, como era mais conhecido, era uma área bem ampla que havia ficado esquecida por anos a fio até que alguns grupos de arte de rua começaram a se apresentar por ali. Em pouco tempo, o lugar ganhou nova vida, novas cores, e passou a ser frequentado também por populares em busca de brisa fresca e de namoros fortuitos. Em paralelo surgiu ali um ponto de venda e consumo de substâncias proibidas.

“Contra toda essa bandalheira”, como eles gritavam nas rádios, televisões e nas redes sociais, estavam os pastores das igrejas das redondezas, dispostos a tudo para expulsar dali “os impuros”.

Por trás desse discurso escondia-se o que interessava aos empresários da fé: aquelas velhas docas espaçosas, aqueles galpões antigos, que serviram ao porto, constituíam o maior desejo dos interesseiros, que imaginavam criar ali uma espécie de circuito neo-pentecostal.

Como não pagavam impostos, haviam os que calculavam as arrecadações de dízimos e doações na casa dos milhões, lucro limpo e abençoado. A guerra, acreditavam eles, era santa, e tudo devia ser feito para “vencer o demônio”.

Isso nos faz pensar nessa curiosa sobre Hodiohill: as pessoas costumavam ser cordiais e alegres, seus habitantes até eram chamados de “os bons selvagens”.

Mas algo mudou, e tal mudança mexeu com os monstros mais profundos da população.

Eram exatamente dezoito horas quando H e P colocaram o pé no marco zero, à beira do Cais. Sentiram o cheiro do mar e respiraram fundo.

Não demorou nem três minutos, e uma sirene disparou de uma das docas, fazendo um barulho ensurdecedor.

Em silêncio, de umas tantas camionetes do tipo caravan estacionadas em pontos estratégicos, desceram grupos de sete a nove elementos de cada uma delas, portando fuzis e metralhadoras.

Glorinha ia à frente, impávida, fria como uma barra de gelo. Pobre mente deturpada pelos pastores, os mesmos que transformaram Jesus em intolerante e disseminador de ódio, diferente do que ele foi ou pregava. Para Glorinha Evangélica, a palavra certa era a dos bispos, dos sacerdotes, que diziam como as famílias deviam ser e agir, que sabiam o que era certo e o que era errado.

Às 18h05, sem pestanejar, os grupos abriram fogo sobre quem se mexia à sua frente.

Desprevenidos, sem estar esperando por aquilo, os populares ficaram paralisados, o que facilitou o massacre. Corpos e mais corpos tombaram.

P e H estavam de frente para o mar, de costas para os atiradores, quando tudo começou.

Tinha muita gente próxima, ao lado, atrás, na frente, e os primeiros atingidos pelos disparos tiveram seus corpos precipitados sobre os dois. Sem reação, P e H foram ao chão também. Foi a salvação deles.

Não fosse o fato de terem caído e a gritaria que irrompeu, o que ajudou a distrair os atiradores, eles poderiam ter virado estatística. Aqueles grupos de atiradores demonstravam uma sanha louca para consumir a farta munição que carregavam para dizimar os seus semelhantes “diferentes”.

Já houve alguém que disse acertadamente que o absurdo não tem sentido em Hodiohill. No passado, a linha de sanidade já havia sido ultrapassada por bárbaros e vikings, por espanhóis,  portugueses, ingleses e franceses, por alemães, russos e italianos, depois por americanos e israelitas, parecia que era hora da loucura guiar Hodiohill.

Foi tudo uma ação planejada, rápida, bem executada, que certamente contou com o apoio de agentes das PosPol, envolvidos no intuito de minar os brios dos opositores e espalhar o pânico.

Para facilitar a fuga, a “gente de bem” espalhou coquetéis molotov e bombas de gás lacrimogêneo na área e nas redondezas. Fico tudo cinza, não se podia ver mais distante do que um metro à frente, não se conseguia distinguir quem era quem naquele quadro insano.

Algumas horas depois, ainda não refeitos do susto e profundamente abalados pelos inocentes dizimados, P e H encontravam-se sob atendimento médico. Sem conseguir sentir alívio pelo fato dele e de P terem sobrevivido, H se voltou para o paramédico que o avaliava e abria seus olhos para olhar lá no fundo:

— Como o senhor está se sentido?

— Dolorido, com a alma em prantos! – respondeu.

— O amor era puro e ingênuo / Até que resolveram complicar / Inventaram o veneno e o revólver / Mas não precisa nada disso / Para matá-lo. – recitou o paramédico, de nome Hélio.

— E se a gente não desse ouvidos a Deus… / Seria um adeus? – questionou a paramédica Magda, que atendia P.

Um outro paramédico que passava por ali, já conhecedor daquela conversa, perguntou:

— E o Senhor da Morte, já veio pedir desculpas?

— Não, ainda não!

O colega nem ouviu a resposta no meio da correria para atender aqueles que ainda tinham alguma chance de vida.

Batendo queixo como faz alguém que está com frio na alma, P estava em choque. H teve forças para perguntar para Magda:

— Quem é esse Senhor da Morte?

— Não conhece? – perguntou a paramédica, olhando bem no fundo dos olhos de P e depois nos de H – é o irresponsável que criou as armas de fogo. Sabem quantas pessoas ele já mandou para o cemitério? Não queiram nem saber. Vocês vão se perguntar como foi possível chegarmos até isso. Eu posso dizer que já estou acostumada. Hodiohill sempre teve tendência para se auto-exterminar, mas agora estamos vendo isso acontecer na frente dos nossos olhos. É real a matança! Qualquer dia somos nós! Vários alertas foram dados às autoridades sobre os ataques que estavam sendo planejados por esses fanáticos, mas ninguém quis tomar providência, ignoraram como se não se importassem com quem seria abatido. No fundo, a cada dia tornamo-nos cada vez mais animais, animais de abate, sem valor humano!

H, que estava sentado no chão, ao pé da ambulância, com as roupas todas rasgadas e sangue colado em várias partes do corpo, juntou forças e se levantou. Estava fraco, mas conseguiu aproximar-se de P, deitada na maca.

H beijou-a na testa. P manteve-se de olhos fechados, e no seu rosto tenso dava para perceber que ela fazia força para se imaginar longe dali e daquele pesadelo.

De repente, H  lembrou-se do Senhor D. de Destino, e na mente dele veio a imagem do velho arrastando-se por um corredor mal iluminado, tão devagar como se o ancião não quisesse seguir, temeroso do que sabia que encontraria pelo caminho. E as lágrimas verteram dos olhos de H, pingando como cera quente na pele macia do rosto de P.

As premonições são tão terríveis quanto os maiores pesadelos.

*

Psyché e Hamlet vão para Hodiohill, de Wagner Merije (Aquarela Brasileira Livros, 164 págs.)

www.aquarelabrasileira.com.br/psyche-e-hamlet-vao-para-hodiohill