* Por Raimundo Neto * 

 Autora do recém-lançado Com armas sonolentas, Carola Saavedra investiga nesta entrevista seu processo criativo, o feminino, a misoginia, e sobre o que é um bom romances. “Acho que o bom romance é uma experiência, um acontecimento. Algo que deixa marcas, mesmo que a gente não saiba quais são, mesmo que a gente não entenda tudo. Aliás, os livros que mais me interessam são aqueles que não se deixam destrinchar totalmente, que têm algo de enigmático, de inacessível.” Para ela, no mundo das artes, tudo está interligado, a literatura, o cinema, as artes plásticas, o teatro. Aborda também o novo trabalho, que traz três mulheres distintas e fortemente interligadas, que experimentam uma situação crescente de abandono e exílio — seja geográfico, seja emocional. A viagem, por assim dizer, que cada uma delas faz poderia ser um jeito de “voltar para casa”, na busca por desvendar sua verdadeira identidade. Leia a seguir.

Ao ler seus romances, reflito algumas vezes que aparentemente há uma suposta intenção de que a escrita se debruce sobre pensar a escrita, que a obra pense a feitura da obra. Há alguma intenção na tua escrita na costura do romance de que a leitora/o leitor se debruce sobre si? Sim, sempre. Eu acho que o bom romance é uma experiência, um acontecimento. Algo que deixa marcas, mesmo que a gente não saiba quais são, mesmo que a gente não entenda tudo. Aliás, os livros que mais me interessam são aqueles que não se deixam destrinchar totalmente, que têm algo de enigmático, de inacessível. É o que busco quando escrevo. Para isso, me parece essencial a participação do leitor na “construção” do romance, na aproximação a esse enigma, não vejo graça no livro que não exige, que entrega tudo pronto, mastigado, eu vejo os meus romances como uma série de perguntas que faço ao leitor, não há respostas prontas, é claro, na arte (como na vida) o que importa não é saber responder, mas perguntar, fazer perguntas que valham a pena, perguntas que nos façam pensar.

 Pensando um pouco as características autobiográficos presentes em muitos feitos literários contemporâneos, é possível uma literatura sem que a autora não viva também na obra? E quais seriam os limites do factual e ficcional em seus romances? Você levanta algumas questões bastante complexas e importantes para o debate atual, primeiro a questão do autobiográfico. Eu diria que a melhor literatura é sempre autobiográfica, no sentido que o autor, mesmo que narre a vida de extraterrestres, está sempre falando de si próprio, de suas questões. Agora, isso é muito diferente de narrar a própria vida, eu posso narrar fatos da minha vida com distanciamento, sem acessar o que há de mais doloroso e transformador neles, por outro lado, posso contar a rotina de uma capivara comendo grama e essa capivara sou eu, sou completamente eu, a grama na boca da capivara é a grama na minha boca, o corpo da capivara é o meu corpo. A força da literatura surge quando nos colocamos ali, em cada personagem, de certa forma é o que Flaubert quer dizer quando afirma “Madame Bovary sou eu”. No meu caso, os protagonistas são eu, sempre. Mas em cada livro isso acontece de uma forma diferente. Acho que “Com armas sonolentas” é o meu livro mais autobiográfico, no sentido de ser o livro mais sincero, menos defendido, é como um sonho, num sonho tudo parece estranho, mas o que ele revela é a nossa verdade, Com armas sonolentas habita esse lugar, o lugar do sonho, do inconsciente, do místico. É um livro que eu não teria conseguido escrever se não fossem dez anos de análise e o nascimento da minha filha, acontecimentos que me fizeram aprender a suportar o medo, e principalmente, escrever (e viver) não contra o medo (num eterno embate), mas apesar dele.

 Parece-me que seus personagens buscam um conhecimento sobre si, ao longo das narrativas, ao contarem-se. O processo da escrita e da criação literária é um caminho para a criação de identidades (no caso, de quem escreve a narrativa)? Sim, eu acredito no poder da palavra, acho que a palavra é a única coisa que pode nos salvar de nós mesmos. Não a palavra vazia, a palavra resposta, caminho percorrido tantas vezes, mas a palavra-enigma, a palavra-oráculo. Raramente pensamos nisso, mas somos feitos de palavras, herdamos às vezes frases inteiras, por exemplo, tem gente que herda algo como “você será um fracassado como o seu pai” e a pessoa sai pela vida carregando esse peso que não e dela, essa profecia. Às vezes as palavras vêm disfarçadas de silêncios, talvez ninguém tenha dito em voz alta “você será um fracassado como o seu pai”, ou “você será infeliz como a sua mãe”, mas elas estão aí rondando, mais pontudas do que se tivessem sido reveladas. Então a salvação, me parece, é a reescrita, escrever por cima (apaga-las é impossível), outras palavras, outros significados, numa espécie de palimpsesto.Com isso não quero dizer que a escrita literária seja um processo de cura, nunca é, mas é uma forma de aproximar-se de si mesmo (para o bem e para o mal).

 É possível fazer muitas leituras de um mesmo romance seu. Para mim, de muitas formas, foi intrigante tentar essas diversas leituras, uma experiência como, de algum modo, ler Cortázar. A leitura torna-se uma experiência. Há alguma intenção consciente traduzida em técnicas narrativas no seu processo de escrever o livro visando aquilo? Sim, sempre. O jogo da amarelinha foi um livro muito importante na minha juventude, foi a primeira vez que eu entendi que o romance poderia ser um jogo, um quebra-cabeças, um modelo para armar. Foi quando pensei, é isso o que eu quero fazer! Eu não me interessava pelo romance tradicional, linear, quer dizer, me interessava como leitora, mas não como escritora, então esse foi um momento essencial. De certa forma, todos os meus livros são modelos para armar, eles contam uma história, na realidade, varias, mas a pergunta “quem narra?” é sempre uma pergunta cuja resposta transforma a narrativa.

 A escritora Sheyla Smanioto (autora de Desesterro) já disse que a escrita dela passa pelo corpo, que ela acredita numa “literatura escrita com o corpo” e que quando uma mulher escreve tem uma fisiologia no jeito que ela escreve. Para você, por onde passa a sua escrita? Sim, a melhor escrita sempre passa pelo corpo, para mim corpo e alma (chamemos assim) são uma coisa só, ou melhor dizendo, o corpo é o avesso da alma, mas não como o avesso de um bordado, e sim como uma fita de Moebius (fita em que as extremidades são coladas após uma torção), aliás a fita de Moebius aparece várias vezes em “Com armas sonolentas”, ela é uma espécie de Leitmotiv da narrativa. Minha escrita passa por essa tela em que o lado de dentro é ao mesmo tempo o lado de fora.

 Li em uma matéria, há um tempo, escrita por uma leitora que esteve num evento em que você participava como convidada (com José Eduardo Agualusa), em que você teria dito “o autor escreve aquilo que consegue”. Partindo do Com armas sonolentas, esse livro é o que você pode escrever ou o que você desejou? Curiosamente sim, é a primeira vez que escrevo o que desejei, que alcancei o que buscava. E sabe por quê? Porque eu não sabia o que estava buscando, foi uma espécie de voo cego. É contraditório, mas é exatamente isso. Nos livros anteriores, eu tinha uma ideia muito clara do que queria alcançar, do que seria o livro ideal (inalcançável, claro), desta vez eu fui por um caminho desconhecido, sem saber onde aquilo ia dar. Então não importava tanto o destino, mas a própria trajetória, esse lugar desconhecido onde eu me movia. De certa forma, encontrei o que buscava porque eu não buscava nada.

 Em um texto escrito por você (não lembro exatamente onde), ao explanar brevemente sobre processos criativos e o tempo da escrita, você disse que a escrita literária é sempre um reflexo da experiência e da personalidade do autor. O que cada um dos seus romances te reflete? É uma pergunta muito difícil de responder porque o texto literário nunca deixa de se escrever, ele se desdobra no tempo e no espaço, tanto para o leitor como para o próprio escritor, por exemplo, outro dia pensando no Toda terça, me dei conta (pela primeira vez!) de que o personagem Javier é baseado num amigo meu que se suicidou, um suicídio que me marcou muito. E não só isso, nesse momento ficou claro que o Javier também se suicida, algo que não acontece no livro, mas que vai acontecer mais adiante, onde a narrativa não chega, é algo que estava ali o tempo todo, tão óbvio, e que eu só fui perceber dez anos depois. Então é uma pergunta difícil porque a gente acha que sabe o que escreveu, mas na realidade a gente sabe bem pouco do próprio livro e suas possibilidades.

 Não saí do Com armas sonolentas sem repensar as heranças das mulheres que me nomearam homem-gay-afeminado, mesmo que não me desejassem assim. Não sei explicar com clareza. Não sei se efeito do livro ou de um momento da leitura do romance, mas foi algo que veio de um lugar do não-entender-completamente. Fiquei elaborando, ao ler o romance: De que (im)possíveis lugares desconhecidos surgiu o “Com armas sonolentas” Que bonito isso que você diz, me emociona, me emociona porque para mim Com armas sonolentas, mais do que um livro sobre mulheres, é um livro sobre o feminino. Uma instância que existe em todos nós, e que cada um vivencia de forma diferente (de acordo com suas próprias marcas), às vezes com orgulho, outras com amor, muitas vezes com medo. Para mim a misoginia nada mais é do que medo do feminino, porque por trás do ódio há sempre o medo, o mais profundo medo. Numa sociedade patriarcal, é claro que o feminino acaba se tornando quase sempre o lugar do Outro, do desconhecido, o lugar daquilo que sobra às palavras, que não cabe nelas. É também o lugar do nascimento (essa passagem indizível), todos nascemos de uma mulher, numa sociedade que valoriza o logos, a razão, é um acontecimento assustador. Não por acaso a medicina convencional sempre tentou tirar da mulher o protagonismo nesse instante, seja com cesarianas desnecessárias, seja impedindo-a de amamentar. Mais uma vez o medo, o medo da potência do feminino, que é também, e talvez principalmente, o medo desse feminino no próprio homem. Você tenta extinguir no outro o que não suporta em você mesmo. Mas respondendo à sua pergunta, “Com armas sonolentas” é um livro que foi escrito de um Outro lugar, para chegar a ele eu me desfiz de todas as minhas certezas, e até mesmo do meu pensamento racional, e adentrei o espaço do inconsciente, do mistério, do que a gente não sabe que sabe. Em termos práticos, quando comecei o livro eu não tinha a mínima ideia de onde ia chegar, e mesmo enquanto escrevia, eu não sabia muito bem o que era aquilo, e mesmo agora, não sei te dizer exatamente o que é o livro, há algo nele que me escapa, repito uma frase que disse uma vez para o Ramon Nunes Mello (que foi um dos meus primeiros leitores), eu não sei o livro, o livro é que me sabe.

 Em O inventário das coisas ausentes, uma personagem conta que “A história não acaba nunca”. No seu processo de criação de Com armas sonolentas, em que momento você compreendeu que essa história estava pronta? Interessante essa pergunta, porque essa foi uma questão essencial durante a escrita de Com armas sonolentas, colocar um ponto final seria ir contra tudo o que o livro dizia, contra esse espaço em que ele acontece (um espaço fora do tempo, em que tudo já aconteceu, como diz a capivara). Então, e foi uma solução intuitiva, o romance termina com a bisavó abrindo um livro e começando a leitura em voz alta para a neta, não é algo que fique claro, não achei necessário, mas na minha cabeça esse livro que ela lê é o próprio livro que o leitor tem em mãos, e assim a história se repete e se repete e se repete, sem início nem final. E era também o único “final” possível, sem isso, estaria escrevendo até hoje.

 Ao ler Com armas sonolentas, recordei aos pedaços a experiência da leitura de seus livros anteriores, e sinto (para mim isso ficou como sensação) que seus romances conversam entre si e que não terminaram ainda. Esse romance é um livro que terminou? Meus romances estão todos inseridos no meu projeto literário, e sim, conversam entre si, há uma busca em comum, uma busca que aparece em todos eles, de certa forma é como se a cada livro eu voltasse a me fazer a mesma pergunta: como narrar?, como narrar no século XXI? Que possibilidades o romance ainda nos oferece? e também porque são romances com final aberto, ou seja, terminam em meio a ação ou pensamento de um personagem, um movimento que continua mesmo após a última página. Porém, apesar das semelhanças acho que o ultimo romance é um pouco diferente, como disse anteriormente, nele a narrativa é circular, fora do tempo cronológico, remete à uma das ideias principais que o atravessa: a herança, palavras, atos, silêncios que se repetem, passados de mãe para filha, é de certa forma um romance-ouroborus, a serpente que devora a própria cauda, então a diferença é essa, enquanto nos livros anteriores o que há é uma interrupção, neste domina a ideia de um eterno retorno. É também (algo que só percebo agora) meu único romance em que a comunicação entre os personagens acontece: a avó lê para a neta (até então eram cartas que não chegavam ao destinatário, uma gravação/voz falando para ninguém, diários que nunca eram lidos etc.), neste, a avó, ao ler em voz alta para a neta no fim do livro, está de certa forma, passando uma herança, dizendo a ela quem ela é, para mim é uma imagem muito bonita.

 Que autoras contemporâneas você leu recentemente e recomendaria a leitura? Muitas, cito as leituras mais recentes: Paula Fábrio, Sheyla Smanioto, Natalia Borges Polesso, Micheliny Verunschk, Anna Monteiro, Renata Belmonte, Natália Zuccala. E tenho lido muitas poetas, também: Jussara Salazar, Angélica Freitas, Ana Martins Marques, Alice Sant’Anna, Ana Estaregui, Elen Juanini. Enfim, são muitas, e isso que eu estou citando apenas as leituras mais recentes.

 De que forma, a seu ver, a literatura pode se comunicar com outras áreas de expressão artísticas? Como é possível essa aproximação? Acho que tudo está interligado, a literatura, o cinema, as artes plásticas, o teatro, quando você ouve os artistas falando do seu trabalho ouve as mesmas questões, a mesma busca. Outro dia fiz uma oficina de dramaturgia com a Claudia Schapira, que é uma artista incrível, e tudo o que ela falava ali sobre construção de personagem, sobre a relação do dramaturgo com o teatro, (tirando algumas questões técnicas) era muito parecido com o que eu penso sobre a criação literária. Tudo é arte, até mesmo o que não parece arte à primeira vista, quando compreendemos isso, fica mais fácil estabelecer um diálogo e escapar das classificações.

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Com armas sonolentas, de Carola Saavedra (Companhia das Letras, 272 págs.)

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Raimundo Neto é escritor e crítico literário

Fotos: divulgação

 

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