* Por Marcelo Maluf *

André Cantú é um poeta que rompe com a limitação da palavra escrita para criar os seus poemas. Explico: escreve/cozinha com a mesma substância de um Alberto Caeiro: “Penso com os olhos e com os ouvidos/ E com as mãos e os pés/ E com o nariz e a boca./ Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la/ E comer um fruto é saber-lhe o sentido”, mas não o faz de maneira tradicional, o seu suporte para as suas criações poéticas é o próprio ato de cozinhar. As palavras se transmutam e, de maneira alquímica, nascem dos ingredientes e temperos, os pratos que saboreamos sem saber que, na verdade, o que nos alimentava e saciava a nossa fome era uma ode ao amor, que bem poderia ter sido engendrada por Pablo Neruda.

Não, caro leitor, A cozinha vegana amorosa não é um livro de poesia, apesar de haver poemas nele. Mas o leitor também encontrará boa prosa, humor, reflexões filosóficas, relatos autobiográficos, crônicas, ensaios, dicas preciosas para a arte de cozinhar e viver, textos para guardar e reler e, principalmente, para pôr em prática. Trata-se de um livro que é um ato de amor pela cozinha, em todos os sentidos: do espaço físico à sua dimensão ética e espiritual.

A cozinha de André Cantú também é sua revolução pessoal e social, um convite para que estejamos juntos nessa revolução. Cozinhar para André é uma atitude amorosa, cheia de ternura e vigor. Envolve o cuidado com o planeta e a compreensão da importância dos elementos da natureza: o fogo, a terra, o ar e a água, para a prática sagrada que é cozinhar.

André escreve/cozinha com liberdade, e por esse motivo tudo está livre, sem aprisionamentos: o animal está liberto do prato, o cozinheiro liberto dos clichês e dos hábitos, o paladar liberto do sofrimento e da falta de sensibilidade, o poeta liberto das palavras e do papel.

André se apresenta também como um grande contador de histórias. Quando digo isso, me vem à mente a imagem de um xamã que, além de curar pelo conhecimento do uso medicinal das plantas da floresta e do contato com os espíritos dos antepassados, tem o poder de curar pelas histórias que conta ao redor da fogueira. Por isso mesmo a leitura do livro é prazerosa e de uma profunda verdade: uma cozinha vegana e amorosa pode curar as pessoas e o planeta, pode salvar a nós mesmos do nosso egoísmo e do sofrimento que causamos aos outros seres sencientes que habitam nossa casa comum: a Terra.

Como em todo bom poema, a cozinha de André pode ser sentida; a razão serve à intuição, é pela educação sensível do nosso paladar que A cozinha vegana amorosa nos chega. Não tente compreendê-la apenas pela via racional, corre-se o risco de não assimilar o todo. O corpo tem de aprender a ouvir, ver, degustar, cheirar e perceber na pele aquilo que a lógica muitas vezes não tem como explicar. Não há como saborear um bom prato sem que deixemos que os nossos sentidos captem os seus cheiros, sabores, texturas e vibrações, sem que estejamos abertos à experiência de sentir.

André comunga a ideia de que uma receita não está ali para que a sigamos como uma regra, como quem apenas repete maquinalmente, mas que a interpretemos e deixemos que transborde pela receita o nosso modo de ser, ver e sentir o mundo. Portanto, como um bom tradutor, é preciso reinventar a receita, dando a ela o nosso ponto de vista, sem deixar de contar com a contribuição milionária dos erros.

Este livro é um convite para que, além de mergulharmos na arte de cozinhar, nós também possamos exercitar quem somos, como vivemos e convivemos. É preciso compreender que o amor existe para ser compartilhado, doado, sem exigir nada em troca. Por isso, para André, cozinhar com amor também é exercitar o desapego, é dar valor maior ao fazer do que aos resultados obtidos, é saborear com coragem e criatividade a experiência da vida, é valorizar a feira livre, os pratos saborosos e simples, a agricultura familiar, é se reconectar a natureza, é viver o aqui e agora, é ser a favor da farofa de hoje que não desperdiça o alimento de ontem, é se rebelar contra a normose social e pessoal.

Conheci o poeta-cozinheiro lendo/comendo um dos seus maravilhosos pratos servidos em seu restaurante “Broto de Primavera”, no Bairro da Liberdade, em São Paulo; um dos primeiros restaurantes que fui quando, eu e minha companheira, nos tornamos veganos, em 2013. Ali eu soube que se tratava de poesia. Naquele lugar pequeno e tão gigante, saboreando aquela feijoada vegana, pude compreender o que era resistir à violência, e que existem vários caminhos para exercitar a espiritualidade, o amor ao próximo e a arte. Aquele prato, sem dúvida, era um deles. Só depois conheci o André pessoalmente, o que fez aumentar ainda mais a minha admiração. Entendi que havia algo naquele prato que, de alguma maneira, reverberava no seu autor, no seu modo de ser e de falar. De perceber e viver no mundo. Hoje eu sei que o que reverberava era coragem e, sobretudo, amor. Digam o que quiser, o amor é o maior antídoto contra a barbárie. E não é de hoje que mesmo surrado e desprestigiado ele resiste e resistirá sempre. O que quero dizer é que André, para muito além da técnica da arte da culinária, conhece a cozinha com sua intuição máxima, não sonega informações e se doa ao que faz, talvez seja essa uma das lições a se extrair desse livro repleto de sabedoria.

A cozinha vegana amorosa pode servir e ser muito útil a quem quer cozinhar e se interessa pela alquimia da cozinha, mas também pode ser lido por aqueles que, assim como eu, se encarregam de lavar os legumes e a louça, mas não cozinham, a arriscarem os seus primeiros passos no fogão.

Por fim, trata-se de um livro para todos os leitores que aspiram viver num mundo menos consumista e mais solidário, menos escravo de hábitos e mais aberto a reinventar a experiência de viver com justiça social, menos violento e mais pacífico, com menos agronegócio e mais amor e ócio criativo, menos especista e mais vegano, com menos ódio e mais compaixão.

 Serviço:

Lançamento: 8 de Junho, no restaurante Broto de Primavera, Rua São Joaquim, 295, Liberdade, das 16h30 às 22h. Pré-venda: https://www.revistavegane.com/livros  

 *

Marcelo Maluf é escritor, autor do romance A imensidão íntima dos carneiros” (Reformatório, 2015), vencedor do Prêmio São Paulo de Literatura, 2016, entre outros

***

A revista literária São Paulo Review é um exemplo de jornalismo independente e de qualidade, que precisa de sua ajuda para sobreviver. Seguem nossos dados bancários, caso resolva contribuir com qualquer quantia:

Banco Bradesco

Agência: 423

Conta corrente: 96.981-8

CNPJ:  07.740.031/0001-28

Caso resolva contribuir, mando-nos um e-mail avisando. Seu nome, ou o nome de sua empresa, figurará como “Nosso Patrono”, na página ‘Quem somos’ do site. Para anúncio, escreva-nos também por e-mail: saopauloreview@gmail.com

Tags: ,