* Paulliny Gualberto Tort *

Uma das coisas mais loucas que ouvi nos últimos tempos veio do Sérgio Sant’Anna: “no Brasil, está se escrevendo demais”. Considero o Sérgio um escritor muito digno, mas soltei uma interjeição qualquer quando li essa frase e até o cachorro que dormia no tapete, assustado com minha reação, ergueu as orelhas. Se existe uma justa medida para a quantidade de textos que deve circular em um país, por favor, me informem a respeito dela. Porque a mim parece dificultoso precisar o momento em que é necessário frear as máquinas que cospem livros e dizer “chega disso, que aqui não aguentamos mais”.

Entendo que a preocupação do Sérgio, a quem ainda não tive o prazer de conhecer pessoalmente, diz respeito à escassez de leitores em um mercado que não cessa de trazer novos livros às prateleiras. Tanta oferta em um universo de pingada demanda só pode fechar uma conta negativa. Mas não acredito que a contenção daqueles que desejam escrever seja uma boa resposta para esta matemática. Afinal, se escrevem demais neste país, quem faz parte do excedente que deve ser contido? Alguém consegue determinar quais são as vozes dispensáveis? Quando falamos em excesso de escritores, temos necessariamente de buscar definições sobre quem pode e quem não pode escrever e publicar. E aí temos um problema.

No oceano das publicações, há inúmeros livros que não atendem aos parâmetros daquilo que consideramos um bom texto. De partida, poderíamos dizer que estes autores não fariam falta. Assim como também não notaríamos a ausência dos bons escritores que ainda não encontraram assento no meio editorial e que, por isso, quase não são lidos, resenhados, prescritos (neste nicho, estão alguns ganhadores de prêmios importantes). Ora, quem então merece figurar nesse país das maravilhas que é o campo literário? As Alices de sempre? Os que já estão bem cimentados em grandes editoras e que raramente são confrontados mesmo quando suas obras apresentam fragilidades que a crítica mais feroz finge não notar? Eis uma questão intrigante.

Qualquer pessoa pode publicar porque isso faz parte de um direito fundamental, que é o da expressão por meio da palavra escrita. É claro que isso não significa que a totalidade das publicações que saem do prelo a cada semana sejam do meu agrado, mas considero humano que todos possam satisfazer seus anseios criativos. Pouco importa que esses textos atendam ou não aos critérios dos olheiros qualificados, mas que haja uma meta cumprida por aquele indivíduo que sentiu a necessidade de escrever; nesta luta que culmina em um livro publicado, ganham ele e a comunidade à qual pertence, pois é lá que provavelmente estão seus leitores.

Julián Fuks sugeriu recentemente, durante o Festival Internacional de Literatura e Direitos Humanos, em Brasília, que é preciso desencastelar a literatura. Eu não poderia estar mais de acordo. E quando penso nessa saída do castelo, desejo não somente a extensão do direito à escrita a maior número de pessoas, mas certa subversão das regras do jogo. Acredito que este último processo esteja em pleno curso, como podemos verificar nas peripécias das pequenas editoras que não raro carregam grandes prêmios nas costas e na explosão de booktubers que influenciam toda uma geração de leitores. Nesse contexto, os velhos donos da bola apitam menos, talvez por isso tamanho desagrado.

Não é que um cenário deva excluir o outro. Não sou irresponsável para clamar pelo fim das grandes editoras ou pelo silêncio da crítica especializada; ambos os sujeitos são imprescindíveis. Mas aqueles que dominavam o meio têm agora de lidar com novos atores e, nesse espaço compartilhado, as regras são diferentes. Em um universo com maior diversidade de vozes, as pessoas não estão dispostas a tragar aqueles que se apresentam como baluartes da literatura. Não temos mais ânimo para os que pensam decidir sobre o que é e o que não é literário ultrajando nos jornais tudo aquilo que não reconhecem como tal. Sabemos que livros são construções e portanto podem mostrar falhas, desvios. Mas uma análise crítica, ainda que dura, não precisa descambar para a excomunhão grosseira que de vez em quando vemos por aí e que em nada engrandece nosso métier.

Ao longo da história do livro, fomos maus juízes em incontáveis circunstâncias. Da Bíblia à Lolita, de Madame Bovary aos Versos Satânicos. Se as obras tivessem parado de circular pelo julgamento recebido, muito do que hoje consideramos canônico não existiria. Pior ainda é imaginar os livros que, por um ou outro motivo, nunca foram publicados e que talvez tenham deixado de dar sua contribuição à cultura letrada que tanto valorizamos. Embora eu tenha um imenso carinho pela literatura, sei que, no fundo, ela não é maior que nenhuma outra forma expressiva e que não precisamos nos entrincheirar com nossos pares para protegê-la. De minha parte, que os escritores pululem! E que essa enorme quantidade de aspirantes à escrita tenha cada vez mais vontade de publicar e que, no intercurso, se descubra leitora. Como bem disse José Luís Peixoto, também durante o Festival Internacional de Literatura e Direitos Humanos, todos têm o direito de escrever. E reiterou: todos. Quando dizemos todos não excluímos nenhum. Com respeito ao Sérgio e aos que concordam com ele, que assim seja!

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Paulliny Gualberto Tort é produtora e apresentadora do programa Marca Página, da Rádio Nacional, autora do romance Allegro ma non troppo e idealizadora do Festival Internacional de Literatura e Direitos Humanos, em Brasília

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Foto ilustrativa: Eles estão cegos (Henri Cartier-Bresson)

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