* Por José Almeida Júnior *

O Intendente-Geral de Polícia observa um corpo em estado de decomposição com um lenço no nariz. A vítima era o seu primo, o comerciante de escravos Bernardo Lourenço. O defunto, envolto em uma colcha sob medida, tinha uma faca cravada na barriga e duas partes do corpo decepadas. Embora Bernardo tivesse vários inimigos, a suspeita inicial recaiu sobre os seus três escravos. O encarregado das investigações também teve alguns entreveros com o primo.

Quem narra as primeiras linhas do livro é Nuno, um sujeito letrado que devia uma grande soma a Bernardo. Nuno havia levado uma sova dias antes do crime pelo não pagamento da dívida. O narrador era o principal beneficiário do crime e, portanto, um dos suspeitos.

O mote inicial de O crime do Cais Valongo (Ed Malê), de Eliana Alves Cruz, parece mais romance policial clássico com um assassinato, uma vítima controversa, vários suspeitos e um investigador. Mas, no final do primeiro capítulo, o narrador Nuno encontra os manuscritos de Muana, uma das escravas de Bernardo, que vai contar a história na sua perspectiva. A partir daí, os capítulos são narrados por Nuno e Muana. Mas é na voz da mulher escravizada que o romance encontra a sua força.

Pelo ponto de vista de Muana, Eliana Alves Cruz leva o leitor a conhecer o submundo do comércio de pessoas. A própria sociedade carioca do século XIX fazia de conta que aquele ambiente perverso não existia. Por isso, o Valongo ficava um tanto afastado da cidade, separado pela Pedra do Sal. Os negros chegavam da África pelo Cais Valongo, os doentes ficavam em quarentena, e nenhum podia sair da região antes de ser vendido. Os muitos que morriam por lá eram enterrados no Cemitério dos Pretos Novos.

O ponto alto do romance não é o assassinato em si e as suspeitas que recaem sobre os personagens, mas a história de Muana. A escravizada era autodidata e aprendeu a ler sozinha. Mas s sua condição de leitora representava perigo para ela. Ela lia o jornal para saber o dia em que seria vendida, pois temia ser levada para algum engenho e acorrentada. Muana também acompanhava pelos jornais as guerras napoleônicas, mesmo sem entender muito bem o que aquilo representava. O romance também apresenta ao leitor a África Oriental, as disputas entre as tribos, e como a família de Muana foi comercializada pelos portugueses.

O Crime do Cais Valongo é bem-sucedido ao reescrever a história, dando voz a uma mulher escravizada. O livro segue a tradição do chamado novo romance histórico latino-americano, inaugurado pelo escritor cubano Alejo Carpentier, em 1949, com O reino deste mundo (Ed Martins Fontes). Carpentier reconta a revolução do Haiti através da ficção, no ponto de vista dos escravizados. O escritor cubano não se atém à história oficial e utiliza elementos fantásticos para subverter a suposta verdade histórica.

A História é constantemente reescrita e hoje o Brasil vive um momento em que forças reacionárias tentam imputar a responsabilização da escravidão aos próprios negros. É a velha retórica de culpar a vítima, como forma de justificar os atos do opressor. Nesses tempos tenebrosos, O Crime do Cais Valongo se apresenta como uma leitura necessária para compreender o processo odioso da escravidão. Não pelo ponto de vista do homem branco. Mas pela voz da mulher escravizada.

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O crime do Cais Valongo (Ed. Malê), de Eliana Alves Cruz

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José Almeida Júnior é escritor e Defensor Público. Autor de Última Hora (Ed. Record).

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