* Por Itamar Vieira Junior *

Considero Amada, da americana Toni Morrison, um dos mais belos e importantes romances da segunda metade do século XX. Venceu o Pulitzer, em 1988, o que me parece também que foi decisivo para que a autora – que só tinha até então seis títulos de ficção publicados -, fosse laureada com o Nobel de Literatura, em 1993. A beleza do romance consiste na habilidade de Morrison em transformar o crime tenebroso de uma mulher num ato que poderia ser praticado por qualquer um de nós, se vivêssemos a sua vida. A literatura tem o condão mágico de nos permitir a troca de papéis, um acordo que pactuamos enquanto escritores e leitores: ao ler – ou escrever -, vivemos a vida dos personagens, perscrutamos os mais insondáveis segredos e nos reconhecemos na imensidão de nossa humanidade.

Sethe, a protagonista do romance, é uma ex-escravizada que vive com Denver, a filha caçula, em Cincinatti, estado de Ohio. A penúria de sua vida persiste mesmo sendo uma mulher liberta, ainda incapaz de se sentir plena pelo simples fato de que seu passado é um fantasma que habita a sua casa, impondo-lhe uma rotina de violência e brutalidade. A chegada de um ex-escravizado de Sweet Home – a fazenda onde Sethe era cativa -, e de uma jovem chamada Amada a casa de Sethe, vai confrontá-la com o seu passado. Entre os conflitos que afloram com tais presenças, surge da própria comunidade onde ela vive o motivo para sua exclusão do grupo: Sethe matou uma de suas filhas, quando esta ainda era uma criança.

No prefácio à edição brasileira, Morrison conta que enquanto trabalhou como editora – e só dispunha das duas primeiras horas da manhã para escrever seus romances – encontrou um recorte do jornal The Black Book contando a história de Margaret Garner, uma jovem negra presa após ser acusada de matar um de seus filhos, além de tentar matar os demais, com o intuito de impedir que fossem cativos na plantação do seu senhor. Morrison diz que “o equilíbrio e a ausência de arrependimento dela chamaram a atenção dos abolicionistas, assim como dos jornais. Ela era, sem dúvida, determinada e, a julgar por seus comentários, tinha a inteligência, a ferocidade e a vontade de arriscar tudo por aquilo que, para ela, era a necessidade de liberdade”. Essa é a matriz da história tornada ficção nas mãos de Morrison, e ela o fez adicionando muitas nuances à alma de sua Sethe.

O infanticídio é um crime considerado hediondo em quase todas as sociedades. Mas a força da literatura de Morrison nos transfere para o lugar de Sethe e ninguém ficará indiferente às razões de seu ato. A mãe assassina a criança para libertá-la de um destino que, nos valores dessa mulher, era muito pior que a própria morte. Morrer, em muitos contextos, pode significar a liberdade definitiva, e só compreendemos essa máxima ao nos colocarmos no lugar de Sethe. Penso no que ocorreria no tribunal da internet se nos chegasse a notícia de que uma mãe, moradora da Maré, tomada pelo desespero e com a saúde mental destroçada pela rotina de violência, matasse o próprio filho, para, na falta de perspectiva, evitar que fosse torturado e morto pelo Estado. O mesmo Estado que restringe e condena o aborto é o que mata os filhos das mulheres negras nas periferias das cidades brasileiras.

Na semana passada, assistimos nas redes sociais ao linchamento moral da professora Joana D’Arc Félix de Souza. O Estado de São Paulo publicou uma matéria, sabe-se lá com quais intenções, tratando a professora como uma impostora, mentirosa, e lhe dando um medíocre direito à defesa, redigido com os sofismos do mesmo jornalismo que não quer ser contraditório. E o tribunal da internet, que julga e condena de forma sumária, arrasando reputações com apenas cento e quarenta caracteres, condenou a professora. As declarações aparentemente falsas de alguns trechos de sua vida condenam todo o restante, inclusive a carreira brilhante, porque a “verdade” contada pelo jornal é que se enquadra nos parâmetros vigentes. Dos inquisidores, a maioria, não houve olhar de compaixão para Joana D’Arc. Não faço a defesa do ilícito, da fraude em currículos, que fique bem claro, mas ninguém quis saber por quais motivos ela haveria prestado informações falsas, mesmo sabendo que as oportunidades não são iguais para todos, sobretudo para uma mulher negra. Joana D’Arc é mais um corpo negro “linchado em praça pública” – e, por ironia, como a Joana D’Arc da Place do Vieux Marché -, como sempre ocorreu desde que os negros aportaram neste continente. E quando se diz que é racismo ouve-se sátiras e negações baseadas nos valores de uma sociedade branca e patriarcal, o inabalável paradigma do nosso mundo.

Definitivamente, se um não-negro não exercitar o seu olhar compassivo – e a compaixão é o sentimento que nos permite nos colocar no lugar do outro –, jamais poderá compreender que não se trata a todos da mesma forma. Que ninguém nunca irá vigiar um escritor branco numa loja porque ele está demorando a escolher o que levar. Nem irão barrar a sua entrada num restaurante dizendo que não há mais vagas. O princípio da igualdade constitucional, em sua interpretação mais usual, pede tratamento desigual aos desiguais. Se uma mãe da Favela da Maré mata seu filho para que não venha a ser morto pelo Estado, não pode ter o mesmo tratamento que um casal de classe média que cometeu o mesmo crime, por exemplo.

Precisamos discutir o racismo todos os dias e convidamos os não-negros para essa jornada. Se você simpatiza com a causa, leia Toni Morrison. Leia Alice Walker, Ana Maria Gonçalves e Conceição Evaristo. Leia Chimamanda Ngozie Adiche e Eliana Alves Cruz. Leia Djamila Ribeiro e Cidinha da Silva. Leia a poesia de Lívia Natália, Edimilson Pereira de Almeida e Ricardo Aleixo. Apenas conhecendo aqueles que vivem essa dor secular na própria pele é que vamos superar essa chaga social que nos corrói por inteiro, enquanto projeto de sociedade.

*

Itamar Vieira Junior nasceu em Salvador, Bahia. É autor dos livros de contos Dias (Caramurê, 2012) e A oração do carrasco (Mondrongo, 2017). É o ganhador do Prêmio Leya 2018 com o romance inédito Torto arado

 

Tags: , ,