M amãe e papai estão brigando outra vez. Eles sempre brigam e a culpa é sempre minha. Papai diz para a mamãe que vai me afogar no mar. Eu ainda não descobri que papai não é meu pai de verdade, só vou saber disso aos vinte anos. Tenho doze e estou morrendo de medo sentada no banco detrás do automóvel. Papai dirige e grita que vai me matar e mamãe ao seu lado chora e murmura. Acho que está rezando. Ela não vai fazer nada além de rezar e chorar. Mamãe é pior do que papai. Eu olho pela janela lateral, vejo a cidade, os outros carros. Há poucos minutos, lá atrás, estávamos parados no semáforo. Pedi socorro para um motorista. Um socorro mudo, para papai não perceber. Fiz sinais com as mãos, esbugalhei os olhos. O motorista sorriu para mim, deve ter achado que eu estava brincando, pois ainda sou uma criança. Agora reconheço que devia ter gritado. Eu olho pela janela lateral e vejo o céu azul. Faz um lindo dia de sol. Penso que vai ser em um dia assim que conhecerei meu futuro marido. Teremos dois filhos. Um menino, logo no primeiro ano de casados. E uma menina, cinco anos depois, vai ser nossa última tentativa de salvar o casamento. Eu não o amava. Casei para sair de casa. Ficamos casados mais cinco anos. Ele foi um bom amigo. Ainda seremos amigos depois da separação. Nossos dois filhos são lindos, como é lindo esse dia de sol. Vejo o céu azul e papai ainda dirige e grita que vai me matar para a mamãe. Mamãe chora e murmura o que acredito ser uma oração. Eu seguro minha filha no colo. Ela tem a cabeça grande demais. Eu a encontrei no lixo, era apenas um corpo sujo sem vestido. Demorei um bocado para encontrar uma cabeça que encaixasse. Tenho outras bonecas, são poucas, mas esta é a que mais amo. Também amo papai, apesar de tudo. Ele tem muitos problemas. Mamãe é fraca. Não gosto dela. Papai diz que já estamos chegando. Eu levanto a cabeça e olho para a frente. Vejo a praia adiante, ela parece sem fim. A areia branca, o mar. Não vejo ninguém mais. Começo a chorar baixinho. Papai estaciona o automóvel e sai. Abre a porta traseira e me puxa pelo braço. Papai machuca meu braço com sua força. Manda eu parar de chorar, mas não consigo. Papai me arrasta pela areia na direção do mar. Mamãe corre atrás de nós e grita. Mamãe grita misericórdia. Mamãe grita não mata minha filha. Mamãe fica entre papai e o mar e cai de joelhos e implora. Papai para diante dela, larga meu braço e segura meu pescoço. Papai me faz olhar para ele e diz que a culpa de tudo é minha. Ele só vai me contar que não é meu pai quando eu tiver vinte anos, em outro surto. Eu vou me casar com um homem que não amarei e vou ter dois filhos lindos com ele. Depois de dez anos vamos nos separar. Nossa filha não salvou nosso casamento. Pelo contrário, caí em depressão, tomei remédios, quase morri. Se bem que eu estava mesmo morta naquele casamento. Então vou largar tudo — marido, filhos, cidade —, para ser feliz. E vou ser feliz ao encontrar o amor da minha vida. Eu vou amar tanto, tanto, o amor da minha vida. Eu me agarro a esses pensamentos todos. Papai ainda aperta meu pescoço com força e eu já não escuto as súplicas de mamãe. Ela está de joelhos na areia. Lembro-me de uma frase de Eduardo Galeano que um dia vou escutar e que me acompanhará por toda a minha vida, uma frase desse escritor que um dia vai ser o meu preferido e do qual terei os livros sempre em minha mesa de cabeceira, uma frase que diz que em um mundo de plástico e ruído, quero ser de barro e silêncio. Eu, que já sou de barro, sou feita então de silêncio também, pois papai quebrou algo dentro de mim e agora meu corpo de doze anos repousa sobre a areia branca dessa praia infinita, enquanto mamãe, de joelhos ao meu lado, murmura alguma oração e papai em pé olha para o céu azul desse lindo dia de sol e grita que sua filhinha amada está morta.

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O conto acima faz parte da coletânea Das pequenas corrupções cotidianas que nos levam à barbárie, do escritor Rodrigo Novaes de Almeida (Patuá, 144 págs.). O livro será lançado amanhã (19), a partir das 19h no Patuscada — Livraria, Bar e Café, Rua Luís Murat, 40, Vila Madalena, SP

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A foto que ilustra o texto é de Henri Cartier-Bresson

 

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