Etarismo

* Por Ricardo Ramos Filho *

Hoje aprendi uma palavra nova: etarismo. Ainda não tinha encontrado em textos, ou diálogos. Gostei. Escritores têm um caso de amor com vocábulos. Como são basicamente material de ofício, tornam-se fundamentais para nossa existência. Estamos sempre atentos à forma como aparecem nos rabiscos, queremos que façam boa figura, escolhemos cuidadosamente cada um deles antes de mostrarmos o trabalho. São mais ou menos como filhos. Pais adoram ver as crias elogiadas, enfeitam-nas antes de sair de casa para que sejam notadas. Apropriam-se depois dos louvores, como se fossem dirigidos às suas pessoas. A diferença, e talvez a metáfora aí não seja tão bem apropriada, é que não podemos adornar as palavras. Fazer isso emporcalharia a obra. Frases escritas dispensam penduricalhos, brilho desmedido. Os termos usados devem aparecer discretamente nas composições, dizerem precisamente e da melhor forma possível aquilo a ser considerado.

Mas vamos ao etarismo! Tem a ver com preconceito. No caso contra os idosos. Tal antipatia, aversão, desprezo, chamem como quiserem, em relação aos velhinhos aparece geralmente de forma velada, nunca é explícita demais, talvez pelo fato de todo mundo estar consciente de que na melhor das hipóteses também ganhará cabelos brancos. Reconhecemos ser horrível ficarmos antigos, mas a alternativa nos assusta. Gostamos de viver como se não houvesse prazo para a melhor idade chegar – quanto cinismo! Melhor idade… Enxergamos o arrastar dos anciãos com asco, nojo – perdoem-me a franqueza. Então, muitas vezes sem perceber, tratamos os considerados caducos – e aí já há etarismo no adjetivo, inadequadamente.

Muitas coisas são tristes em nosso relacionamento conosco amanhã, pois seremos os tiozinhos do futuro. A primeira providência tomada é isolar os seres mais alquebrados. Aos poucos vamos nos afastando deles, deixando de procurar quem é maior de sessenta, acostumando-nos com sua ausência. De certa forma desejamos nos preparar antecipadamente para o seu fim. E como morremos de medo da morte, culpamos os pobres por nos lembrarem tão claramente a indesejada. Preferível garanti-los apartados, bem longe. Mesmo quando estão presentes, e aí reside a maior perfídia, damos a eles categorizações diferentes. Redundam bem menos insignes. É comum não levarmos em conta as opiniões proferidas, rimos, muitas vezes, de suas ponderações, marcando propositalmente o quanto os consideramos ultrapassados, ou até mesmo inconvenientes. Qualquer demonstração de fraqueza, e sim, envelhecer significa perder força muscular, ou ter os sentidos da audição e da visão, por exemplo, enfraquecidos, é acompanhada por impaciência. Não suportamos a característica morosidade dos maduros, exaltamo-nos ao ter que repetir palavras não escutadas, adiantamo-nos e os largamos para traz quando caminhamos. São um tipo de gente menos gente.

Rapidamente eles encontram dificuldade em conseguir trabalho. O mercado também comete ageismos. Quando nos deparamos com um termo ignorado, imediatamente chegamos aos sinônimos deles. As empresas necessitariam pagar maiores salários para os mais experientes. Melhor trocar por funcionários mais jovens.  Frequentemente contrata-se dois juniores pelo valor de um senior. Não se valoriza capacidade, sabemos bem como é medida a meritocracia no mundo corporativo.

A consequência é encontrarmos viventes amargurados, solitários, tristes, mergulhados em dificuldades financeiras, doentes, autoestima abalada, abandonados e maltratados. E como são frágeis, exibem-se pouco aparelhados para responderem às agressões. Incrível falta de respeito pelo mais velho em nossa sociedade. Tornam-se, assim, o alvo perfeito para os inescrupulosos.

Terminam a vida sendo tratados feito crianças. Cercados de diminutivos. Conversamos com eles como se possuíssem dificuldades cognitivas, fossem portadores de algum atraso intelectual, tudo em nome de um falso carinho. Seria melhor enfiá-los de uma vez no grupo da petizada. Pobrezinhos!

E assim vamos, de “inho” em “inho”, imbecilizando o idoso e exercendo nosso etarismo sem ao menos perceber nossas cismas. Mas o tempo é fatal. Nos cobrará lá na frente, se houver amanhã.

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Ricardo Ramos Filho  é escritor, com livros editados no Brasil e no exterior. É Professor de Literatura, Doutor e Mestre em Letras no Programa de Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. Desenvolve pesquisa na área de literatura infantil e juvenil, onde vem trabalhando academicamente Graciliano Ramos – seu avô -, privilegiando o olhar sobre seus textos escritos para crianças e jovens. Ministra diversos cursos e oficinas literárias: como aprimorar o texto, literatura infantil, roteiro de cinema, poesia, conto,  crônica, romance. É roteirista de cinema com roteiros premiados. É orientador literário e analista de originais, colaborando com escritores na elaboração de seus livros. É cronista do Escritablog , publicando no espaço Palavra de Cronista, e do InComunidade, revista de literatura do Porto, Portugal. Participa como jurado de concursos literários: Proac, Portugal Telecom, Prêmio São Paulo de Literatura. É presidente da União Brasileira dos Escritores (UBE), São Paulo. Como sócio-proprietário da Ricardo Ramos Filho Eventos Literários cria e produz eventos culturais. Possui graduação em Matemática pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1986).

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Imagem: Henri Cartier-Bresson por ele mesmo

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