Em entrevista a Márwio Câmara, Luigi Ricciardi, escritor paranaense, fala sobre a composição de Criador e Criatura, livro de contos que tece diálogo sobre a natureza da escrita de ficção e autoficção.

Luigi Ricciardi, pseudônimo de Luiz Cláudio Ferreira Silva, é escritor e doutorando em Estudos Literários pela UNESP/Araraquara e acaba de lançar o livro de contos Criador e Criatura pela editora paulistana Kazuá.  O livro tece um breve diálogo sobre a natureza da escrita de ficção e, ainda, sobre estar nos dois lados da mesma moeda (ou seja, no de criador e criatura). Não é à toa que no conto Eu, Literatura, o narrador diz: “No fundo todos nós somos literatura, todos somos personagens inventados por nós mesmos e vivemos esse romance burguês contemporâneo e nos arrastamos até onde dá para ir.” Do mesmo modo, a exemplo, acontece em Noites Meias em Montmartre, onde vida e literatura caminham, lado a lado, como se diluídas em um único corpo: “Eu não sou escritor, sou literatura. Eu sou a própria página que escrevo. Vivo num eterno processo de transubstanciação. As letras, pontos, parágrafos, folhas correm à solta por minha corrente sanguínea, passam por entre os tecidos, penetram nos órgãos e saem pelos poros. Ainda não descobri se essa é doença que me mata ou o remédio que cura.”

Em entrevista exclusiva para a São Paulo Review, o autor fala sobre o seu processo de criação, o interesse pela autoficção, as dificuldades de ser escritor no Brasil e os problemas relacionados à má formação de leitores.

Pode falar um pouco sobre como surgiu o trabalho de reunião dos contos de Criador e Criatura? Alguns contos desse livro foram excluídos do livro anterior, o Notícias do submundo (2014). Não por considerá-los menores, mas por achar que não pertenciam àquele projeto especificamente. Quando escrevi o conto Criador e Criatura, tive a ideia de escrever contos que brincassem com a questão da invenção, cópia, realidade, ficção, criar e ser criado. Assim foram nascendo a maioria deles. Depois, retornando àqueles que haviam ficado na berlinda, percebi o potencial que tinham para discutir esses aspectos. Voltei a trabalhar neles e os incluí no livro.

Observa-se nos contos orquestrados nessa respectiva seleta que o interesse maior em grande parte das narrativas é de falar sobre essa ponte que entremeia a ficção com a realidade. Ao mesmo tempo, observo que o livro em sua conjuntura estabelece uma dicotomia nos discursos narrativos apresentados em determinados contos, muitas vezes se comunicando com o gênero ensaio, por exemplo. Como professor de Literatura e doutorando em Estudos Literários, você acredita que, os textos teóricos podem ter influenciado ou influencia em algum momento na sua forma de narrar? Sou defensor da divisão entre gêneros apenas como caráter didático, para que se entenda as diferenças a partir de alguns elementos. Mas não sou totalizante. Tanto que, ao escrever, gosto de quebrar os muros que separam discursos, gêneros e preferências. Muitos dos meus contos são poéticos, meus poemas são fortemente narrativos e outros textos são mesmo, como você disse, um misto de conto e ensaio, até mesmo se aproximando da crônica. Se esses textos teóricos que li ao longo da minha formação influenciaram é algo que não sei dizer. Acredito que somos formados a partir de vários elementos com os quais tomamos contato. Acredito no inconsciente, então, sim, talvez tenha.

Muito tem se falado sobre a crise do narrador em primeira pessoa, sobre a autoficção e o interesse cada vez mais latente dos escritores contemporâneos em falar sobre o mundo da composição literária ou das frustrações da vida de um escriba. Qual é a sua visão sobre isso? Esse é um tema que me interessa tanto que virou meu objeto de pesquisa no doutorado. Acredito que há uma grande dualidade na autoficção e na escrita de si. Aponta para um universo de exposição da figura do autor, apenas uma consequência da espetacularização e da curiosidade com o privado que domina nossa cultura há algum tempo. Porém, ao se colocar em diálogo com a espetacularização e com a massa, evidencia uma das grandes características do romance contemporâneo: um rompimento de barreiras entre alta cultura, cultura popular e cultura de massa. Acho isso incrível. É claro que há mais questões envolvidas, mas só isso já me faz ter um interesse muito grande pelo tema. E espero, ao contrário do que pensa Daniel Galera ( premiado escritor brasileiro) que a autoficção não seja efêmera e não desapareça tão cedo.

Com a sua experiência de docente, como você enxerga a realidade atual do ensino de literatura no Brasil e o que poderia ser mudado para potencializarmos o interesse pela leitura desde cedo entre as crianças e jovens? No meu ponto de vista a escola não deve ser somente a responsável por essa questão, embora seja inevitável a sua influência. Acredito que faltem bons mediadores de leitura entre os profissionais de Letras, o que acaba por dificultar o trabalho de conscientização da prática da leitura. A família empurrou para a escola toda a responsabilidade de educação e isso inclui a leitura. Mas a escola é despreparada. Mas não culpo os professores especificamente, mas ao modelo de ensino e o sucateamento das instituições. Sucateamento não só físico, mas também de salário e preparação dos professores. Sinceramente, acredito que uma reformulação total da educação é a solução para muita coisa, incluindo aí o domínio da leitura

Em entrevista concedida há alguns anos, o jornalista e escritor José Castello me contou que não cursou Letras por influência de seu próprio professor de literatura, que, na ocasião, lhe disse que o excesso de teoria poderia prejudicá-lo durante o fazer literário, diferente da atividade jornalística, onde ampliaria seu campo de vivência. Sabemos que estudar e fazer literatura são coisas completamente diferentes. No seu caso, como você enxerga o campo da pesquisa acadêmica com a escrita de ficção? Existe alguma preferência? Em algum momento escrever textos acadêmicos te prejudicou a produzir literatura ou vice-versa? Acho deplorável a atitude desse professor. Não por aproximá-lo do jornalismo e outras áreas, mas por afastá-lo das letras. É por uma atitude dessas que a produção literária ficou tanto tempo afastada do curso de letras. Acredito que as instâncias de criação literária e estudos literários estão muito mais próximos do que se imagina. Nos Estados Unidos e em alguns países da Europa, por exemplo, há uma relação muito mais próxima entre as duas instâncias. Dentro dos cursos superiores há a produção literária e bolsas para a criação. No Brasil, já há cursos de graduação e pós-graduação em Escrita Criativa. Acho que uma coisa não atrapalha a outra. Não tenho preferência, embora a estrutura de escrita científica me coíba um pouco. Quanto a prejudicar ou atrapalhar aí é de cada um, penso que comigo nunca aconteceu.

Quanto a ser criador e criatura, quando descobriu o interesse e a vocação para ser ficcionista? Desde criança. Acredito que todo mundo tem potencial para a ficção, pois, já pegando carona em uma fala de Clarice Lispector, a criança tem a mente solta, fabula, cria e reinventa mundos. A vida e o sistema matam aos poucos esse potencial, o que é uma pena. Sempre gostei de escrever narrativas no colégio, mas como muitos fiquei longe da criação na adolescência e início da idade adulta. Nessa fase me dediquei ao deleite das poéticas letras de música popular. Fui voltar a rabiscar algumas linhas já no curso de letras, por incentivo de uma amiga. Não parei mais.

Quais são as maiores dificuldades de se fazer literatura ainda hoje no Brasil? Antigamente se reclamava que não havia leitores suficientes. Hoje, o público leitor no Brasil vem crescendo, mas há ainda muitas questões a serem resolvidas. Uma delas é o preço do livro. Se compararmos com outros países, o preço de capa ainda é muito alto. Sem contar a porcentagem irrisória que o autor recebe por exemplar vendido. A distribuição dessas obras em editoras físicas pelo Brasil também deixa a desejar. Isso tudo colabora para a não profissionalização do escritor, que precisa trabalhar em outras áreas para complementar renda.

O que mais te atrai na literatura de ficção? Não sou purista ao ponto que achar que a arte não possa nem deva entreter. Ela deve ter algo além disso, mas também entretém. É engrandecimento, conhecimento, mas também passatempo, distração etc. Acho que a literatura tem um efeito terapêutico. Ao mostrar outros seres humanos agindo, o leitor pode compreender o próprio mundo em que vive.

Existe algum conto preferido dentro da sua seleta, e por quê? Vejo meu último livro como uma unidade. Leio ele sem divisões. Por isso não consigo escolher um.

Por que Literatura? Porque é a arte que mais mostra o ser humano agindo e atuando, é a que mais mostra o interior da mente humana. E também porque sou apaixonado pela palavra escrita, desde antes do meu processo de alfabetização. Contam em família que eu reconhecia letras e palavras antes de entrar na escola. A literatura era um caminho inevitável.

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Márwio Câmara é escritor, jornalista e crítico literário. Mora no Rio de Janeiro

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