* Por Amador Ribeiro Neto *

Adriana Calcanhotto é um dos nomes mais expressivos da música popular brasileira contemporânea. Isso não se discute. Basta considerar a riqueza de suas melodias e harmonias, a diversidade de suas interpretações e, acima de tudo, a excelência de sua poesia. Ou, para os mais convencionais, a excelência da poesia de suas letras de música – distinção que considero desnecessária e anacrônica, à luz da recente teoria da poesia. Mas isso é assunto para outro momento.

Ela já organizou três. O primeiro, Antologia ilustrada da poesia brasileira; para crianças de qualquer idade, foi lançado pela editora Leya Casa da Palavra, do Rio, em 2013. No ano seguinte saiu a segunda edição, ampliada, pela Edições de Janeiro, também carioca. O livro faz um mergulho na história da poesia brasileira, de Gonçalves Dias a Gregório Duviver. O resultado é, no mínimo constrangedor. Da obviedade à pasmaceira, num ramerrão de admirações tolas. Há exceções. É claro. Mas a regra é que conta aqui. O que salva, na verdade, é a qualidade das ilustrações, feitas pela antologista, que é grande ilustradora.

Em 2014 publica Haicai do Brasil (Rio: Edições de Janeiro, 2014). Como anotamos em algum lugar, “as ilustrações de Adriana, centradas em poucas pinceladas, lembram ideogramas dialogando com o traço de Amílcar de Castro. Um belo trabalho. Os haicais selecionados pecam, ao menos por dois motivos: 1: muitos deles já compõem o livro Haicais (S. Paulo: Companhia das Letras, 2009), organizado por Rodolfo Witzig Gutilla; 2: a seleção de Adriana Calcanhoto elege haicaístas e haicais duvidosos”.

Agora Adriana Calcanhotto acaba de lançar É agora ou nunca; antologia incompleta da poesia contemporânea brasileira (S. Paulo: Companhia das Letras, 2017). Já no subtítulo vem-nos um desconforto: “antologia incompleta”. Pressupõe-se que haja uma antologia completa. Há? Creio que nem nos sonhos de Borges. Mas isso é o de menos. Ao menos, por hora.

É agora ou nunca reúne 41 poetas que nasceram entre 1970 e 1990. Ou seja, a novíssima geração da poesia brasileira. O propósito é louvável. Sempre o é quando o projeto tem em conta a divulgação desta poesia ainda insurgente. Adriana afirma na apresentação que esta antologia “é uma  agrupamento de  poemas armados por uma leitora de poesia diletante, não acadêmica ou crítica”. Esta explicação restritiva não a isenta da responsabilidade que publicação de um livro de poesia, com este perfil, traz. O fato de ser uma antologia pessoal apenas redunda o que todos sabemos: ainda que embasada num repertório teórico definido e consistente, toda escolha acaba sendo, em última análise, pessoal. E o fato de ser pessoal não a desobriga de ser crítica. Afinal, toda antologia é pessoal e incompleta.

É curioso notar que 83% dos poetas são das regiões Sul e Sudeste, 17% da região Nordeste e nenhum das regiões Norte e Centro-Oeste. O Rio de Janeiro concentra 50% dos poetas selecionados. Puxa, o coletivo CEP 20.000 tem feito escola. São alunos eficientes em  usar a linguagem desleixada. Aplicam bem a lição aprendida em tsunamis de mesmices sentimentaloides.

Ok, a escolha é pessoal, está avisado. E é incompleta. Também está avisado. Mas concentrada no Sul e Sudeste? Antes: no Rio? Por quê? Quem explica? Ao que nos consta, um antologista tem a obrigação de conhecer a poesia produzida em todas as regiões de nosso País. Não há nada de valor fora do eixo Sul-Sudeste mais um risco de Nordeste? Ok, se produz mais no Sul e Sudeste? Quem garante isso? O Rio é o atual celeiro da poesia brasileira? Desde quando? Quem garante? Nossa Paraíba, por exemplo, tem revelado um rico quadro de jovens poetas. Quem nega? Cadê sua presença na antologia? Ok, é parcial.

Dos quarenta e um poetas apresentados, destacam-se oito entre bons e muito bons. Oito dentre quarenta e um é uma média bem baixa. Em todo caso, vamos a eles: Simone de Andrade Neves, com seu estilo seco, batendo forte em imagens duras e cortantes de “Latente” diz: “Boda do prato / praia da ilha // Há devir /na ínsula / à deriva”. Poesia que maravilha e faz pensar.

Leo Gonçalves é feliz ao trabalhar as reiterações da oralidade em “Língua de Aruanda”, mas é no terceto sem título que acerta em cheio: “nada mais / será como / dante”, operando uma síntese entre poesia e música popular. Sem noves horas.

Camila Nicário é parcimoniosa deste a inexistência de título para seus dois poemas. Num deles diz: “Como continuar a ser a mesma pessoa / depois de ter conhecido a Fontana di Trevi? / Você me dirá o quanto eu sou tola / e que o conta-gotas dos dias / nos transforma permanentemente… / Eu estaria, com gosto, de acordo / se não fosse a  pequena moeda / que, do fundo da água, / cintila redonda meus cinco centavos / de desejos impronunciáveis”. O desfecho redimensiona o preço, a crença, o propósito do eu lírico. Desconstrói o esperado, como a fonte reverbera a imagem da moeda sob as águas.

Paulo César de Carvalho é dono de um estilo singular, já marcado em cada um de seus livros: aquele que funde puzzles de sentido com reverberações sonoras em versos minimais. Sua poesia é musicalidade em alta voltagem de significado. Cito um fragmento do longo “minha mala”: levo / na minha / mala / minha / mandala / minha viola / nana / na / victor jará / janis / callas / tame impala // nela levo / ella / avalovara / sinatra / sidarta / baraka / drácula / odara // comigo vai / martinho da vila / paulinho da viola / violeta parra / cartola / cachaça / maria alcina / alzira / maria fumaça // levo marina lima / marília medaglia / amélia / amália / martinália / e se ela / quiser ir / eu levo / anália // (…) tô indo / embora / meu bem / pra maracangalha / ou pra pasárgada / e passe bem / larga / a mala / ela / é minha / mas eu / não sou / de ninguém / disfarça / e chora / eu já vou / minha cara / olha  o trem”. A facilidade que o poeta encontra no jogo de som puxa som, associado a uma gama rica de significados, lhe dá, literal e figuradamente, uma dicção única em nossa poesia contemporânea.

Donny Correia talvez seja o autor do poema mais bem realizado da antologia. “Kancer (solilóquio)” é um longo e conciso poema. Longo no número de versos. Conciso na exatidão das imagens. Nenhuma delas não poderia estar fora do poema. Todas têm função e força em sua poesia. Cito os versos iniciais: “Quando me convenci / de que eu era imortal / veio o Doutor e disse:  – É câncer…”. E quando se espera que o eu lírico discorra sobre o câncer, ele de fato o faz, mas apenas como pretexto para o pacto que estabelecerá com a doença: “Eu serei seu alimento / e você, o meu  motor / serei seu combustível / e você meu velocímetro / serei seu servo / e você meu amante / autoritário. / Algoz atento, / rói / mais lento / minhas carnes de dentro. // Rimos juntos / do tempo.  / A você juro fidelidade:” E o final do poema: “Passe um ano ou passem / cem, amigo, imundo amigo meu, / rói / mais lento / as carnes sujas de dentro / Que as de fora, vou à farra, / E roo eu”. Virulência de uma linguagem impactante na escolha dos vocábulos, tanto sonora quanto semanticamente. Força na estruturação do poema, em estrofes que adensam o tema numa forma que mimetiza a dor, sem nomeá-la.

Bruno Molinero é autor, até o momento, de um só livro (Alarido, editora  Patuá, 2015), mas já traz sua marca para a poesia contemporânea:  a narrativa do jornalismo policial convertida em possante vivacidade poética. Talvez seja nosso Rubem Fonseca da poesia. Não podemos dizer como serão seus livros futuros. Com este, e com os poemas desta antologia, vê-se que é um poeta que sabe manipular o clichê da crônica policial reciclando-o como quer a poesia. Cito fragmentos de  “carolina, 15, queimou”: “pegaram tudo // (…) // nenhum livro // (…) queimou tudo // (…) ninguém ouviu / queimou tudo // (…) homem vestindo roupão de sogra / ferro retorcido  / cinza onde  era vermelho / marrom onde era azul / árvore sem folha /  camiseta sem cabeça / (…) queimou tudo // menos / uma página  de drummond / e um vaso com planta / palito  de sorvete fincado  na terra / que seguiram verdes / no amontoado de telhas e tijolos / quebrados”.

Omar Salomão possui uma linguagem que dialoga com o modo de fazer versos de Paulo César de Carvalho. Nisto ambos são muito bons: em sacar, no ar, a manha das imagens marotas, tecidas em jogos de sons e sentidos: “você vai ver / ainda vai notar / vou escrever algo pra você / sem perceber / assobiar // besteiras / tolices / andanças // fazer você lembrar / tornar você lembrança / delírios desafinar / dançar nossa distância // vou escrever você / vou escrever  você vai ver / sem perceber / assobiar”.

Há uma vertente clara na antologia É agora como nunca: a dos poetas bem intencionados e suas ótimas referências poéticas. O diabo é que ficam fazendo a lição dos mestres, não vão além, repisam a repetição: são os diluidores de Drummond, Bandeira e Cabral.

Júlia de Sousa é drummondiana em excesso. Até o poeta itabirano se assustaria: “Deitado na cama / Olhos no teto mudo / Não temo o silêncio / Não temo o escuro / Mas a bomba, mãe / A bomba”. Sequência de imagens, sintaxe e ritmo: tudo clonado. É bonito? É. Mas Drummond já fez. Não vale.

Ana Guadalupe é outra que faz um bom poema. Mas ébrio da poesia do mesmo grande Drummond: “em santa catarina fui infeliz na maioria dos dias / cultivei bichos de pé e outros parasitas / os animais de casa tiveram pulgas / e é claro que morreram jovens”, e por aí segue tropeçando nas pedras do caminho do mestre. Também não vale.

Thomaz Ramalho, além de bandeiriano, poderia ter suprimido o último terceto de seu poema, panfletário e desnecessário. O poema se inicia na cola do Bandeira. Até aí, tudo bem. Ele parodia “Poética” do mestre, adaptado aos dias de hoje. O diabo é que, depois de uma boa introdução, o poema patina na redundância da redundância da redundância e reduz a taxa de informação a quase zero. Cito o bom  início: “depois do acordo ortográfico / instituir / o desacordo fonético / um decreto / impedindo / que todos os sotaques / se tornem / novela das oito”. É engraçadinho. Arranha Bandeira. O que vem depois, per se, desgraça todo. Projeto falido.

Thiago E é autor de bons poemas em Cabeça de sol em cima do trem, seu livro de 2013. Mas aqui ele comete dois erros. No primeiro poema, sem título, faz prosa em cima do clichê bobo de início do mundo, criação, etc… Tema e linguagem surrados. Não  funciona. A seguir, o poema “o mar e o pano” é um exercício cabralino bem realizado. Feito o exercício ele poderia partir para seu próprio poema. Não parte. Pena.

Estrela Ruiz Leminski continua insistindo em afirmar nada sobre nada. Seu livro Poesia é não (2010) só tem de bom o título. E, mesmo assim, chupado de um trocadilho com livro de Augusto de Campos. Ela pisa e repisa o que já observamos certa feita: “Há pressa na poeta em publicar seus poemas. Pressa aqui não se refere à linha do tempo, à diacronia. Refere-se à euforia, à efusiva rapidez na conclusão dos poemas”. Pois é: agora nos damos conta: não é pressa – é inaptidão para a poesia. Como ela mesma diz “tem alguém aqui que se perdeu / sombra / assombração / lembrança / presença / sou eu”. É ela quem diz. Eu repito. Não discuto: assino.

Uma dominante no livro de Calcanhotto é a presença de poemas feitos a partir das facilidades do que ficou conhecido como Poesia Marginal. E que insisto em dizer que não é poesia, já que são textos que, até o momento, só receberam louvação antropológica, sociológica, política. Ou seja: documentos de época. Coisa sem validade estética. E é a falta de rigor com a linguagem, a displicência com a oralidade, a irresponsabilidade com o coloquial que marcam a dita Poesia Marginal. E que faz escola em É agora como nunca.

De Alice Sant’Anna, passando por Gregório Duvivier, Ismar Tirelli Neto, Fabrício  Corsaletti, Bruna Beber, entre outros, encontramos o mesmo molde de fazer poesia – com pequenas variações.  A base é a mesma: relaxo com a linguagem, que se confunde com busca da naturalidade. Natural é Bandeira, Mário, Drummond. Nada do que os poetas citados acima fazem move o leitor minimamente. Nem se ele disser: estou em férias e quero sossego. Pois aí é que os poemas nos pegam: não dão sossego. São muito ruins.

Para não dizerem que falo sem citar, cito. Começo com “Âmbar”, de Alice Sant’Anna: “comprou brincos de âmbar / porque alguém disse / que se juntasse a cor da  pele / com a dos olhos e dos cabelos / a soma seria âmbar / no telefone  sorri muito / mexe a cabeça  para que os brincos / pendurados batam no fio / assim ela lembra que está de brincos”. Basta desse pinga-pinga de nada sobre nada em linguagem vazia. Não há poema, não há tema, não há nada. Só o vazio a encher de mais confusão esta antologia.

Gregório de Duvivier, ótimo cronista e excelente roteirista  e ator do Porta dos Fundos, deveria deixar a poesia de lado. Pra que escrever, por exemplo, isso que ele nomeou “Gênese II”: “no princípio era o verbo / uma vaga voz sem dono / vagando pela via láctea // depois veio o sujeito / e junto com ele todos / os erros de concordância”. Erro de concordância é considerar esse troço um poema. Não é. Mas para quem duvida, há coisas bem piores (parece impossível? não é), em seu livro Ligue os pontos: poemas de amor e big bang, que já tivemos oportunidade de comentar.

Bruna Beber vai no mesmo ritmo chinfrim: “felicidade é o que tem dentro / das bolinhas de papel // e se arremesso / lá vai ela // pela porta na careca / do inspetor”. É fácil constatar a picaretice da linguagem. Parece que nada à enésima potência é a palavra de ordem desses poetas.

Ismar Tirelli Neto é detentor de grave perturbação existencial. Por isso escreve “Ansiedades quanto a uma academia”. E se você pensa que é a vida intelectual da universidade que o perturba, leia isso: “inscrevo-me no plano trimestral / atividades aquáticas: / duas sessões de hidroginástica / e uma de natação / durante (o que se obvia) três meses”. Esta é a íntegra da primeira estrofe do poema. Dou-me ao luxo de eximir-me de digitar as demais. O leitor que me perdoe se o frustro. Estou apenas compartilhando minha frustração. Onde se pensa que há poema há esteiras.

Fabrício Corsaletti prova que a poesia não é sua praia, tanto nas quadras como nos versos livres. Leia-se, a título de comprovação, o poema “Vizinha”: “é uma senhora simpática / sem netos / sem cachorro / sem queixas contra / o horário da retirada do lixo / a data de dedetização / não conversa sobre o tempo / no elevador / não reclama do trânsito / anda a pé / é claustrofóbica / às vezes sobe de escada”. Pois é: melhor mudarmos de companhia. E de andar.

E assim chegamos a Marília Garcia, que produz um  longuíssimo poema intitulado “ztaratztaratsztaratztaratztaratztaratsztaratztaratz”. O título remete ao genial  Zuca Sardan, que ela cita no poema. Não, sem antes, explicar a gênese de tanta lorota cuspida verborragicamente: “escrevi este texto de uma  só vez / no domingo dia 18 de agosto  de 2013”. Pois bem, isto não é uma explicação pós-poema. São “versos” do “poema”. Acreditem. Eu até agora estou pasmo. E, como se não bastasse, cito o final do dito poema: “depois de escrever este texto / a alice me contou / que era aniversário do zuca de 80 anos nesse mesmo dia 18 / dedico o texto a ele incorporando suas margens / e as bordas tipográficas ao texto e ao título”. Pobre Zuca, não merecia esta afronta.

E deixemos a palavra com a organizadora: “convido o leitor, a leitora, para o meu livro de férias,  desejando bom mergulho”. Pois é. As águas são rasas demais. Melhor passar batido. Deixa pra lá. Valeu, Adriana Calcanhoto: continuamos aguardando seu próximo disco.

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É agora ou nunca; antologia incompleta da poesia contemporânea brasileira (Companhia das Letras, 2017)

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Amador Ribeiro Neto é crítico literário

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