A professora de literatura e psicanalista Marlene Bilenky conta de seu encontro com a poeta Eunice Arruda, que morreu na semana passada.
* Por Marlene Bilenky *
Eunice Arruda, uma poeta presente nas minúcias do viver, deixa a sua ausência entre nós. Como nos versos: pisei de leve/ fiz da cabeça o coração/ E sempre parti.
Curioso era o olhar dela sempre pronto a capturar o instante, para colher sua matéria prima. Alusiva a Drummond e Bandeira, mestres do nosso modernismo.
Em versos declama seu encanto e desencanto que esclareciam um viver particular de quem sabe o enigma da vida.
Eu tive uma experiência original da Eunice, faz 30 anos. Era na época do nascimento do meu filho. Eunice veio me ver, eu era poeta de fôlego curto, pois não segui escrevendo, como ela acreditava.
Falei do meu estranhamento desse momento de ter parido meu filho. Disse-lhe sem saber que sentia saudades da vida.
Eu que a conheci num dos eventos de poesia de Wladyr Nader, pioneiro em fazer os movimentos dos poetas e dos momentos literários, em 1978, quando foi lançada a vibrante antologia Mulheres da vida. Li muito as poetas, amei o livro, as mulheres se revelavam no seio criativo da nova escrita. Eunice encabeçava o movimento.
Eunice unia as poetas, chamava, abraçava, mandava ler, mandava se encontrar. Com voz doce, dizia o fundamental: vamos fazer! Vamos!
Para Orides Fontela, poeta de difícil acesso e de grande reconhecimento na crítica brasileira, escreveu o poema Fontela, porque se enternecia com as dificuldades de Orides, que era sempre arredia a algum contato. Mas Orides era acessível a Eunice.
Eunice, pioneira nos movimentos de literatura e de divulgação das oficinas, considerou bom meu livro de poemas Pernas abertas do tempo, 1980. Foi aí que ela me chamava para fazer parte dos eventos de escrita. Nasceu meu filho, e ela escreveu o poema: “Marlene Bilenky”, um retrato daquele momento. Publicou na década de 80, e em novembro de 2015, ela foi em casa pra entregar seu livro Tempo comum – pois quis reeditar o poema e renovar seu encantamento por aqueles tempos. Sempre grandiosa ao ver o pequeno das coisas.
Marlene Bilenky
De cabelos crespos
longos
avermelhados
Lembra a palavra paixão
Recostada em almofadas rodeada
De poemas amigos acontecimentos
querendo
transformar a água em vinho
De cabelos crespos
curtos
avermelhados
Vestida de consequência
recomeçando
outra vez lembra
a palavra paixão
Sinto saudades da vida
Do livro Tempo comum (Editora Pantemporâneo, 2015)
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Marlene Bilenky é professora, escritora e crítica literária. Atualmente é psicanalista clínica