* Por Raimundo Neto *

Os espectadores entram barulhentos na cena já montada. Um depósito guarda sete mulheres arrumando caixas que guardam relógios caros. É a primeira noite de ocupação da fábrica de relógios LIP, nos anos 70, em Besançon, na França. Assim começa a peça “No Coração das Máquinas”, de Rita Carelli e Marcos Arzua, que evoca a história de uma fábrica francesa de relógios ocupada e gerida pelos próprios trabalhadores, durante dois anos.

Sete mulheres vivem a cena desde o início. O trabalho não pode parar.

Caixas empilhadas no galpão armam o cenário. Do lado de fora, a polícia cerca a fábrica, e há uma iminente ameaça de invasão. Enquanto as sete mulheres resistem para manter o emprego, apavoradas.

No início, as trabalhadoras levantam as caixas e as dispõem como assentos. Ainda que seja difícil sentar-se confortável sobre o lucro do patrão, que força tem uma mulher para lutar contra um sistema devorador do feminino a cada desigualdade? É isso que elas descobrem no curso da peça.

A cada caixa empilhada, as mulheres consultam seus relógios de pulso, fazem planos com os relógios guardados nas caixas. As horas paradas nos relógios que não lucram conflitam com as horas cansadas que aquelas mulheres carregam em seus corpos.

Praticar a própria força com aquilo que não lhe pertence: é assim que se nasce mulher: o corpo já é do outro.

Sombras são projetadas no palco, onde luzes de uma cidade em movimento engole o feminino. Ao longo dos atos, as luzes do galpão sofrem espasmos, a força que lhes falta. E à medida que a intimidade se abre (mostra os peitos e o coração), todas elas reconhecem a coragem do feminino da mulher seguinte, daquela que deu-lhe a mão, e é uma extensão de si.

Primeiro, a força dos gestos, no corpo; depois, o risco iminente, e o medo. Sustentar uma greve, manter uma revolução é uma ameaça ao sistema. O mesmo sistema ameaçador, que maltrata o feminino.

Perdidas na escuridão de uma incerteza, a coragem de muitas delas se esconde. E as sombras das mulheres caminham perdidas, embora incansáveis. Quem disse que a coragem é sempre uma luz que cega?

A polícia, na montagem, é apenas uma ideia, e avança em espectros, enquanto as mulheres fogem dentro da escuridão. Mas a opressão é real, ela é sempre real. Nenhuma opressão, por mais fantasmática que possa ser, conseguirá manter-se como ideia apenas. As mulheres correm, esbarram na possibilidade de desemprego, nas dívidas, nos filhos para criar; mas é da veia da escuridão que escorre a coragem.

São mulheres diferentes na fé, perseverança; diferem nas ideias de maternidade, de coragem, compaixão e ética. Não há fraqueza, afinal que trabalhadora consegue resistir sem fraquejar diante do império violento do masculino-patrão-dotado-de-ameaça-que-goza-com-a-dor-do-feminino-submisso? Se a mulher fosse homem. Se a mulher não parisse. Se a mulher fosse casta. Se a mulher não gozasse. Se a mulher fosse bicho. Se a mulher não fosse nada.

Aos poucos (caixas pra lá, caixas pra cá), elas tentam manter a calma, contando, ordenando, empilhando caixas: manter a ordem, apesar de tudo. A opressão diária parece introjetar uma fidelidade alienada.

Mas ao abrirem os afetos guardados em si, explanando sobre seus pavores e equívocos, elas permitem-se (pela primeira vez, talvez) desarrumar todas as caixas, invadir a intimidade das caixas, ver o que tem dentro do lucro que não mora em suas mãos. Quando reconhecem a coletividade de seus sonhos, a luz vinga e adquire firmeza.

E só quando se permitem encarar a própria resistência, e entender a greve instalada como luta importante, as caixas voam pelos ares, num golpe leve e corajoso. Não é mágica, é coragem.

Ao se reconhecerem donas da fábrica, temporariamente, as engrenagens de uma intimidade otimista fazem a coragem delas adquirir potência. Nem elas acreditam no próprio poder.

Sentar na cadeira do presidente da empresa torna-se um ato de resistência. Em seguida, adiante, todas se revezam no sonho de “E se eu for presidente”. Dominam a palavra libertadora, o sorriso cúmplice, o corpo gritando liberdade.

O feminino explode em palavras livres de pecado. Uma mulher também pode ser presidente. Não é pecado. Ser mulher não é pecado. Ser dona de si e do próprio futuro não é pecado, não é ilegal. Elas mudam de lugar para romper estruturas, e abobalhadas inventam ordens, revertem lugares, revezam-se no ambiente que as oprime, chutam o conforto masculino-burguês que as explora.

Outro dia, num ato político sobre a atual crise política no Brasil, vi o dramaturgo Zé Celso dizer que sempre que encontrarmos um percalço à nossa frente é importante, mais que oferecer resistência, que re-existamos. Re-existir, para ele, é contornar as dificuldades e inventar, acender a nossa potência criadora e inventar, desviar, sem fugir, sem ceder, enlouquecendo sempre, em atos políticos contínuos.

Re-existir é o que aquelas mulheres fazem em todos os atos. Ao dançarem e entregarem seus corpos, rindo, engolindo o preço pago pelo éter do patrão, elas re-existem. Ao assumirem a dignidade existente no aborto, elas re-existem. Ao compartilharem segredos e chocolates, entre pesadelos, elas re-existem. Rebelar-se é re-existir.

Resistir é importante, e Zé Celso tem razão: re-existir é mais poético.

Uma das mulheres, em uma das cenas, assume a poesia da vida e diz “A gente devia viver sempre assim conversando, rindo.” Ela quer subverter a ordem: quer que o espaço onde elas fabricam o tempo, o qual elas nunca poderão usufruir, seja lugar de afeto, de intimidade: que se abra espaço para o feminino. E nesse espaço, o masculino e o feminino deveriam ser pessoas, não homem e mulher. Tudo na mesma medida.

O ato-greve abre a intimidade das sete mulheres; o ato-resistência revela-as íntimas e outras. Elas mudam, tocam a intimidade através da coragem, re-existem. Descobrem-se possíveis. Elas não levam mais as caixas-opressão com a responsabilidade de antes, compromissadas com a exploração que enche o bolso do patrão. A luz do galpão, antes instável, agora deixa que os seus olhos permaneçam sempre abertos; não há mais tropeços. Elas sabem exatamente onde pisam. Elas também não olham mais para os relógios, as horas correm e elas permanecem calmas; eufóricas, mas calmas.

Não são mais diferentes, as mulheres. Absurdo agora é baixar a cabeça. As dores de ser mulher, de ser máquina de re-existir as aproxima. Ao revelarem o que mora no peito, reinventando o próprio destino, surge a decisão de vender o “coração das máquinas” e pagar os próprios salários.

No final, uma poesia espalha um pouco de esperança também para a plateia: A vida não pode parar.

É assim que não se corrompe tantos ideais.

Só assim não se vende o coração dos sonhos.

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A peça dialoga com todas as resistências atuais, no Brasil: os estudantes que reinventam o ensino, que ocupam e desconstroem a ideia de escola e aprendizagem; as mulheres que pintam a cara e o peito pelo feminino que pode ser o que quiser. Uma montagem sobre um evento político nos anos 70 dialoga com o Brasil de hoje e sempre.

A montagem é um também um ato político.

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A segunda temporada ocorre na Casa do Povo, de 11 de maio a 16 de junho, com sessões às quartas e quintas, às 20h

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Raimundo Neto é escritor

 

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