É com tristeza que a São Paulo Review continua a série colaborativa, entre mais de 30 escritores nacionais bastante conhecidos do público, com homenagens às crianças assassinadas em tiroteios nas comunidades cariocas.

Cada autor escreve sobre uma das crianças vítimas da barbárie.

Asseguramos a qualidade do teor literário dos trabalhos e assim gritamos bem alto com a arma que nos cabe, a da palavra, contra a violência a que estamos vivendo.

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* Por Alberto Villas*

O dia de 30 de junho de 2017, uma sexta-feira quente apesar do calendário indicar inverno, nasceu como um outro qualquer ali na Favela do Lixão, Duque de Caxias, Baixada Fluminense, vizinha da Cidade Maravilhosa. Um apelido que resiste bravamente desde 1913, quando a escritora francesa Jane Catulle Mendès escreveu o poema La Ville Merveilleuse e que, vinte e dois anos depois, virou marchinha de carnaval na batuta de André Filho.

Cidade Maravilhosa

Cheia de encantos mil

Cidade Maravilhosa

Coração do meu Brasil

 É no lixão, como é conhecida a comunidade, que mora um casal já com certo jeito de carioca, mas ambos vindos da Paraíba carregando consigo os seus nomes típicos da região: Klebson e Claudineia.

Klebson é Klebson da Silva, 27 anos, conferente de estoque num frigorífico em São João do Meriti. Nasceu na pequena Natuba e deixou pra trás a Paraíba em busca de dias melhores no que chamávamos de Sul Maravilha. Claudineia é Claudineia dos Santos, 29 anos, tesoureira em um supermercado na zona sul do Rio de Janeiro. Nasceu em Lucena, uma cidadezinha perto de João Pessoa, com 10 mil habitantes. Saiu de lá há cinco anos pelo mesmo motivo de Kleber, na esperança de que dias melhores viriam. Os dois moram juntos num dois cômodos e ultimamente, viviam excitados e esperançosos. Claudineia estava grávida de nove meses e a data do nascimento do bebê já estava marcada para 13 de julho.

Sabiam que era um menino, a ultrassonografia confirmou várias vezes, e o nome já tinha sido escolhido: Arthur, assim mesmo, com H como um bom Arthur. Para o primeiro filho que iria nascer, prepararam um cantinho na casa modesta, o espaço dele já estava praticamente todo pronto, berço, as roupinhas, os sapatinhos de lã, a banheira, as fraldas, bem pequenas, para recém-nascidos, já estavam estocadas no armário. Mas, o carrinho, ainda não, ainda faltava o carrinho do bebê.

Com a chegada do fim do mês e início de outro, salário em breve na mão, os dois pensaram em dar uma olhada no preço de um carrinho que levaria o pequeno Arthur estrava afora, nos primeiros anos de vida. Acharam um em conta e compraram.

Quem passasse por ali nas redondezas do Lixão naquela sexta-feira, 30 de junho, e visse um exemplar do jornal O Globo dependurado com um pregador de roupa numa banca meio estropiada da esquina, ia ver que a manchete principal anunciava uma denúncia contra o presidente Michel Temer, então encurralado.

Quem parasse diante da banca para observar melhor aquela primeira página de jornal, já meio amarelada pelo sol, ficaria sabendo, pelas manchetes:

Governo fixa meta menor de inflação

Com tetos de gastos, Rio terá socorro

Ficaria sabendo também que um estudo mostrava que exercícios ajudam no tratamento do câncer e, para tristeza da galera botafoguense do Lixão, o Fogão perdera do Atlético Mineiro pela Copa do Brasil por 1 a 0, gol de Cazares aos 7 minutos do primeiro tempo.

Na página policial, o jornal descrevia o drama de Francisdalva Alves, viúva do porteiro Fábio Franco de Alcântara, morto vítima de estilhaços de granada durante um conflito entre policiais e bandidos do Morro do Pavão-Pavãozinho, para liberar o corpo no Instituto Médico Legal. Os dois viviam juntos há dezesseis anos mas a burocracia exigia uma certidão de casamento que eles nunca tiveram, apesar do amor, que estava sempre vivo.

Na página 20, inteira, uma publicidade dos Supermercados Guanabara anunciava uma lata de Leite Ninho por 10 reais e 98 centavos, um pacote de peito de frango por 7,99 e as fraldas BabySec por 9,99. E quem comprasse três Toddynhos, pagava apenas dois, levava um de graça.

Na última página do Segundo Caderno, o colunista Arthur Dapieve falava do punk rock da Plebe Rude, uma banda da Brasília dos anos 1980,  e citava a música Clapdown, do Clash, que dizia: “Raiva pode ser poder”.

Na seção de notícias internacionais, o assunto principal era ainda o drama dos refugiados, perambulando sem destino por esse mundo de meu Deus. E, na página de consumo, a polêmica era a campanha LGBT da Coca-Cola, que escreveu na latinha: Essa Coca-Cola é Fanta, e daí?

A foto principal na primeira página de O Globo mostrava uma vergonha nacional: Um policial fardado levando um colega preso, acusado de extorsão ao tráfico.

No final da tarde, depois de comprar o carrinho do bebê, Claudineia, preocupada com a onda do vírus da zika que ameaçava as grávidas, resolveu passar numa pequena mercearia na entrada da comunidade para comprar repelente. Ia chegar em casa e passar no corpo, conforme viu numa reportagem na televisão, para evitar as picadas dos mosquitos que insistiam em voar ali pelas ruelas do Lixão. Fazia isso meio contrariada porque costumava enjoar com o cheiro do repelente.

Os relógios marcavam exatamente 17 horas e 30 minutos quando se ouviu um estampido no ar. E outro e outro. Claudineia, que estava na porta da mercearia, sentiu uma queimadura na perna e ainda tentou se esconder atrás de uma viatura policial que estava ali, protegendo também os policiais que trocavam tiros com os bandidos.

De repente, Claudineia estava no chão, pingando sangue. Correria e aflição. Foram muitos os que ajudaram a pedir uma ambulância para leva-la, grávida de nove meses e ferida, para o hospital mais próximo.

Ela havia sido atingida por uma bala perdida e corria risco.

O tiro rasgou o lado direito de Claudineia, perfurou a sua bacia e atingiu o tórax do pequeno Arthur que ela guardava consigo há 39 semanas.

Às 18 horas e dois minutos, Claudineia deu entrada no Hospital Moacyr do Carmo, na rodovia Washington Luís, em Caxias.

Quem estava de plantão desde sete horas da manhã era a doutora Polliny Batista Pereira. Foi ela quem viveu aqueles minutos iniciais e angustiantes da tragédia, sem saber ainda se o bebê na barriga de Claudineia estava vivo, ferido, correndo risco de morte.

Havia um clima forte de susto e bala ali na emergência do Moacyr do Carmo.

O coraçãozinho de Arthur foi ouvido e os médicos ficaram sabendo que os batimentos estavam irregulares e ele sofrendo. A cesariana, que não foi dúvida em nenhum momento, foi realizada em 15 minutos. Os médicos de plantão retiraram o bebê de pouco mais de três quilos da barriga de Claudineia e começaram uma luta contra o tempo.

Arthur chegou ao mundo envolto a muito sangue e, sem forças, soltou um choro baixo e muito fraquinho. Os médicos, firmes e fortes, fizeram uma radiografia e entubaram Arthur. Com as vértebras e clavícula fraturadas e a cartilagem da orelha direita esmigalhada, ele recebeu imediatamente uma anestesia local para drenagem do tórax.

O pai, quando soube dos procedimentos, respirou um pouquinho aliviado.

– Ele sobreviveu!

O doutor Luiz Miller, de 36 anos, estava se

preparando para fechar o plantão e voltar pra casa depois de um dia de trabalho, onde a mulher, grávida de nove meses e o filho de quatro anos, o esperavam pro jantar. Quando passou pela sala de cirurgia e soube do caso do bebê baleado na barriga da mãe, vestiu novamente a indumentária médica e partiu pra luta, na tentativa de salvar Arthur.

Durante as primeiras horas de vida, os médicos fizeram de tudo para salvar a vida do menininho. Até então, eles não sabiam ainda como seriam as próximas horas e o futuro de Arthur. Sabiam que crianças costumam surpreender médicos, dando uma rasteira na própria história da medicina.

Mas havia uma pedra no caminho. O Hospital Washington Luís não tinha condições de fazer um tratamento adequado em Arthur, que exigia cuidados muito especiais devido as circunstâncias por tudo que passara.  Começou então uma luta contra o tempo e contra a burocracia.

O bebê foi intubado e já estava respirando por aparelhos, quando os médicos resolveram drenar os dois pulmõezinhos, sendo que um deles estava perfurado pela bala perdida. Só havia um dreno torácico no hospital e a escolha do Doutor Miller foi usar um tubo orotraqueal, que é usado para intubação na traqueia.

Aos poucos, Arthur reagia, lutando para poder respirar e conseguindo, bem devagarinho. O Doutor Miller nunca tinha drenado uma pessoa tão nova, recém-nascida. Para ele, aquela era uma operação típica de uma situação de guerra de verdade, com soldados feridos e tiros para todos os lados. Pensando bem, era.

Os médicos ainda não sabiam se Arthur um dia iria conseguir andar pelas ruas do Lixão como qualquer criança, correr, empinar pipa, subir nos muros, jogar futebol. Era preciso deixar o tempo correr, pelo menos um pouco mais. As primeiras horas eram decisivas.

Claudineia foi levada para a UTI do Hospital Adão Pereira Nunes e começou a se recuperar razoavelmente bem. Mas ela estava aflita, querendo saber notícias do filho. Insistia que queria vê-lo ou, pelo menos, através de uma fotografia, para se sentir um pouco mais aliviada.

O pequeno Arthur, correndo sério risco de vida, continuava com um quadro de saúde grave mas estável. O pai, Kleber, conversou com os médicos e achou melhor não fazer um relatório completo do estado de saúde do pequeno Arthur para a mãe. Preferiu ir falando aos poucos.

E foi assim que ela soube que o pequeno estava ferido e, mais tarde, que poderia nunca chegar a andar.

Quatro dias depois de ser atingida por uma bala perdida, policiais da 59a. DP foram até o hospital para ouvir Claudineia. Durante uma hora e meia, ela contou como tudo aconteceu, apontando os detalhes que lembrava. Os policiais prometeram que iriam investigar o caso e foram embora.

No dia 5 de julho, Kleber foi ao cartório de Duque de Caxias e registrou o filho: Arthur Cosme de Melo. Agora, o menininho tinha nome e sobrenome.

No dia 10, logo cedo, a revista Veja começou a chegar às bancas de todo o país com Arthur na capa. A fotografia, na verdade, era um raio-X dele, logo depois da cesariana. Na manchete: A história do bebê sem história.

Os dias foram passando e a agonia era permanente. A mãe em um hospital, se recuperando bem, e o filho, entre a vida e a morte, em outro hospital.

O pai ia visitá-los diariamente. A mãe em um hospital e o filho em outro. Por um lado, animava-se ao ver a mulher de pé, uma espécie de mamãe coragem, tentando enfrentar aquela situação com a garra de uma mulher paraibana, de fibra.

Claudineia estava tão animada que, vaidosa, chegou a pedir ao marido que lhe trouxesse uma maquiagem. Ela tinha notícias de que Arthur estava se recuperando com muita dificuldade, mas lutando para viver. Ela continuava com aquele desejo de mãe, de carregar o filho no colo, cantar uma cantiga, colocá-lo no berço para dormir

Arthur continuava dentro de uma incubadora na UTI neonatal do Hospital Adão Pereira Nunes, observado 24 horas por três médicos.

No domingo, 30 de julho, Duque de Caxias amanheceu fria com os termômetros marcando  12 graus nas primeiras horas da manhã. Kleber e Claudineia lembraram que Arthur estava fazendo um mês de vida, mas a preocupação continuava muito grande. Seu estado de saúde agravara mas continuavam com a esperança de que ele conseguiria sair dessa. Agora era uma hemorragia que o ameaçava.

Os relógios do Hospital Adão Pereira Nunes marcavam 14 horas em ponto quando o coração de Arthur parou. A família foi avisada e só restou o choro contido e o silêncio.

Algumas horas depois, sessenta pessoas estavam no Cemitério Nossa Senhora das Graças para a cerimônia do adeus. O caixão com o corpo de Arthur, levado no colo pelos pais até a gaveta de número 22, era  inteiramente branco e media pouco mais de um metro do comprimento.

O bebê estava coberto de flores e usava uma toca azul, uma toquinha que fazia parte do enxoval de uma mãe zelosa, preocupada com o inverno que se anunciava.

O silêncio era doído no cemitério e só foi quebrado quando algumas pessoas entoaram a canção Preciso de ti, Senhor.

Na mesma banca de jornal na entrada da Favela do Lixão, no dia 30 de julho de 2017, um mês após a bala perdida ter atingido Arthur, O Globo trazia logo na página 3, uma grande reportagem sobre armas de fogo. O titulo era “Febre de tiro” e o olho da matéria dizia o seguinte: Número de brasileiros que obtém autorização para ter armas de fogo explode no país.

Nesses trinta dias de vida de Arthur, outras 86 pessoas foram atingidas por balas perdidas nos entornos da Cidade Maravilhosa, aquela Ville Merveilleuse da escritora francesa Jane Catulle Mèndes.

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Alberto Villas é jornalista e escritor, acaba de lançar o e-book Mil Tons, o meu Millôr, pela editora e-galaxia

 

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