É com tristeza que a São Paulo Review continua a série colaborativa, entre mais de 30 escritores nacionais bastante conhecidos do público, com homenagens às crianças assassinadas em tiroteios nas comunidades cariocas.

Cada autor escreve sobre uma das crianças vítimas da barbárie.

Asseguramos a qualidade do teor literário dos trabalhos e assim gritamos bem alto com a arma que nos cabe, a da palavra, contra a violência a que estamos vivendo.

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*por Cristina Judar*

 

O fogo rolava à sua frente, aos lados e na parte de dentro. Feito de plástico flutuante, era um sol com todas as propriedades de astro rei. E que mundo bom é esse, onde é possível ser dona de um sol, sem todo aquele calor que queima, por apenas sete reais. [O chão para a bola rolar é de graça, ela cantava e dançava].

A manteiga cai pra baixo e confirma o azar do pobre [alguém disse no balcão]. Filé a cavalo. O que é filé a cavalo? [Ela imaginou um cavaleiro, uma estrada, chapéu e botas]. É o ovo sobre o bife. [Ai, que sem graça]. Em inglês se diz sunny side up quando queremos, no nosso prato, que a gema amarela e mole fique para o alto [a professora de inglês é filha do dono do bar e ajuda a atender os clientes. Piscou pra ela].

Em todo relacionamento existe um núcleo, uma célula com exclusivas leis e regras e doses exatas de sentimento, carne e razão que unem duas ou mais pessoas. Se rompida por cateter, bala ou esconjuro, sua essência escorre, vazada e caótica, sujeita a distorções e a infecções em geral. É preciso proteger essa gema alojada no coração das pessoas. O sagrado não vive em objetos ou símbolos, mas nessas esferas de potência comumente invisíveis. Não há linguagem que alcance ou descreva essa realidade, embora ela contenha a origem de toda a linguagem do mundo. [Sua mãe assim divagava ao assistir a sua dança; não queria ver a sua pérola, gestada por nove meses e há seis anos vívida e completa no reino exterior, entregue aos porcos do mundo e aos seus olhos usurpadores].

Ela veio numa bola de fogo. Ressurgida de um ambiente vermelho, doída e arranhada por dentro. Os ruídos do espaço, misturados aos batimentos do seu coração, a fizeram chorar pela primeira vez. Nasceu como se estivesse há milênios na Terra [seu corpo, a partir dos extremos ‘cabeça–pés’, conectava o ar da atmosfera ao magma do centro do planeta].

Dançar era a sua forma de pisar firme no chão. Com os pés, desenhava órbitas visíveis para os que se propunham a, com ela, dividir espaço. A santa descalça [em estado de graça] promovia o entendimento da diversidade entre pessoas que não encaravam esse assunto como algo lá muito importante. Ela estimulava a evaporação de águas mal curadas do peito, entendimentos variados, reconciliações entre desiguais.

Menina em erupção, trazia em si o mistério e a saída. A reviravolta no pensamento para que o cotidiano fosse coisa pequena diante do que é assistir a um planeta girar [um fenômeno digno de respeito, assim como os mais raros feitos astronômicos].

Naquele dia, ela executou um balé estranho. Nada de graciosidade ou flores. Ventos cósmicos não aparentes. Deixou de ser, destituída de todas as suas pétalas. Despedaçada por um calor que não dá para descrever em palavras ou executar em passos leves. Foi invadida por uma dor que veio inteira [muito antes que o entendimento sobre aquilo que é dor pudesse chegar]. Partiu, despedaçada, em um único movimento, surgido não de seu interior ou origem, mas fruto de uma ação externa do homem, enviesada e mortífera. [Deixou atrás de si uma bola de fogo].

Cristina Judar é autora das HQs Lina e Vermelho, Vivo e do livro de contos Roteiros para uma vida curta – Menção Honrosa no Prêmio SESC de Literatura 2014. Seu mais recente trabalho é o romance Oito do sete, ganhador do ProAC de Literatura em 2014.

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