* Por Rodrigo Naves *

Aconteceu de repente. Perdido no trânsito de Santos, procurando uma placa que me guiasse, um nome despertou em mim um doce devaneio. Em meio à cacofonia de fios, cartazes, pessoas e carros, as letras prateadas pareciam um verso: Lar das Moças Cegas. Um retiro de paz e silêncio pousou sobre a tarde agitada. Não era apenas a completude de um mundo de sombras que afastava o casarão simples do movimento da avenida insuficiente. Também o arcaísmo das palavras a distanciava do convívio com a realidade. Lares não há mais. Moças tampouco. E os cegos tornaram-se há tempos deficientes visuais: veem o que não veem.

Aquele lar não despertava piedade. A julgar pela fachada, moram ali moças operosas. Do lado direito, uma lotérica recolhia apostas. E faixas de pano falavam de um plano de saúde organizado pelas moças cegas. Outros letreiros mencionavam cursos profissionalizantes e terapias ocupacionais. Na minha imaginação, eu as via recebendo indiferentes o dinheiro alheio. Ou empenhando-se em zelar pela saúde e pelo bem-estar de seus semelhantes e de si próprias.

E quando a noite — a nossa, os que julgamos enxergar — chegava, uma vida muito especial poderia se desenrolar no interior do sobrado. Mulheres jovens que se reconheciam apenas pelos seus sons moviam-se pela casa conduzindo nos corpos seus próprios espaços. E, com a delicadeza de quem precisou aguçar os sentidos, cuidavam para não invadir territórios alheios. Talvez conversassem, costurassem, ouvissem música. Mas suspeito que para todas elas a convivência pressuporia esse tateamento de quem não conhece bem as distâncias, embora saiba não poder prescindir delas. No coração da noite buscavam criar e perceber sutis diferenças, a reduzir o escuro que as envolvia e aproximava.

O Lar das Moças Cegas existe e pode ser encontrado na avenida Ana Costa, no centro de Santos. A descrição que apresentei é fiel, ainda que só tenha olhado para a casa por uns poucos instantes. Já devaneios são momentos em que a continuidade dos dias e dos hábitos se interrompe e que nos oferecem tudo que a gratuidade pode oferecer. Não se pode exigir deles um compromisso com a verdade. Nem mesmo sei se de fato mora alguém na sede da entidade. No entanto, o Lar das Moças Cegas ajuda a compreender, por contraste, algumas dimensões incômodas da vida contemporânea.

Consideremos por exemplo essas moradias de vidro que respondem pelo nome de “Casa dos artistas”, “Big Brother” ou “No limite” e que fazem a delícia do público televisivo mundial. Diferenciam-se em tudo do Lar das Moças Cegas. Nelas tudo é transparente, exteriorizado, visível. Mesmo a turma de desocupados e desocupadas que passam o dia enchendo o tempo parece se reduzir àquilo que mostra: músculos. Em consequência, esse convívio enfático precisa se traduzir em contatos físicos, e não é à toa que os caras se tocam sem cessar, friccionando-se como morcegos. Quando pronunciam alguma coisa, apenas colocam legenda em cenas absolutamente compreensíveis sem fala.

No entanto, esse mundo de todo visível revela um aviltamento supremo do olhar e de seu correlato, a distância. Aqui, o que conta é o tato. E não penso que esse encurtamento das distâncias se deva apenas à necessidade de erotismo e de índices de audiência. Nessas casas de boneca o próprio mundo torna-se mais doméstico e apreensível. Conflitos, simpatias, rancores e afeições se explicam por uma química de corpos e idiossincrasias. A vida real — pois não se trata de ficção — teria ali sua matriz, a que não faltam cobiça, competição e recompensas. E é justamente por isso que essas casas de vidro atraem e se diferenciam de uma cena de rua qualquer. Nelas a vida se mostraria em sua completude e repleta de sentido: uma história com começo, meio e fim.

O esquema é de fato bem bolado. Cenas íntimas e privadas mostram-se publicamente. Numa transposição malignamente genial, produz-se a impressão que, ao espectador, se revela em sua inteireza a própria chave da conduta humana. Simultaneamente, julgamos perceber o comportamento — algo público — e as intenções  que o movem, já que temos acesso às mais ocultas fabulações daqueles seres cristalinos, sem segredos ou mistérios. Durante o Carnaval, os participantes de “Big Brother Brasil” decidiram festejar, e de imediato a alegria se fez realidade. Assim como os corpos de mulheres e homens se tocam sem cessar, tudo ali se explica mecanicamente, por relações de causa e efeito, como numa mesa de sinuca.

Mas seria demasiado esperar que apenas a explicação da origem dos atos humanos prendesse multidões de todo o mundo diante do televisor. Há menos kantianos na Terra. As casas de vidro têm também seu projeto utópico. Estas realidades de cristal trazem seu sentido à vista, livrando seus habitantes de toda sorte de aflições e angústias. Pode demorar um pouco. Mas mais cedo ou mais tarde intenção e destino coincidem, com o que a vida se desfaz de dramas inúteis. Afinal, a vida é uma bolha de sabão, com a vantagem de quem a infla também poder habitá-la. E a recompensa, evidentemente, salta aos olhos: são todos jovens e belos, não fossem também um pouco lento das ideias.

Quanto mais complexa fica a vida contemporânea, mais apetitosas se tornam as explicações caseiras. E seria injusto atribuir a esses programas a exclusividade da iniciativa. Elas estão por toda parte. Não faltam mesmo nas manifestações da chamada cultura superior: na volta da fachada na arquitetura pós-moderna, quando tudo vira casinha; na reivindicação, pelas artes visuais, de uma fusão entre obra e vida (esta vida!), com a consequente proliferação de instalações que, na maior parte dos casos, não passam de ninhos; no interesse geral pela vida íntima de homens e mulheres apresentada em best-sellers; numa figuração esperta no design contemporâneo, fazendo de mãos e pernas o desenho de cadeiras e mesas, a tornar lúdicos os atos cotidianos; no esforço para transformar em arte a alta costura, domesticando de vez a criação artística, que passa a ter dia e hora para se mostrar, além de obedecer às exigências das estações; na crítica generalizada a toda noção de forma, ou seja, na recusa a qualquer tipo de mediação que faça dos significados uma função de relações reveladoras, e não apenas de narrativas e figuras.

Todos esses eventos possibilitam a experiência arrogante de acedermos ao núcleo dos acontecimentos sem sermos maculados por eles. Não há forma de explicação mais tranquilizadora. Compreendemos tudo sem sermos postos em causa. É melhor ficar de fora. Alguém, afinal, precisa manter a calma. O voyeur não tem nem mesmo coragem de desejar — deseja o dos outros.  Uma curiosa  exterioridade caracteriza todas essas manifestações. Por isso estão tão perto da pornografia. Insistem em apresentar à luz do dia o que não se pode mostrar assim. Cúmulo da ironia: nesses nossos dias violentos, ficamos sem saber qual o sequestrado, qual o sequestrador, pois o cativeiro se revela reversível — dentro e fora não fazem mais sentido. George Orwell mal imaginava aonde poderíamos chegar.

No entanto, para quem sabe olhar, o mundo todo pode estar contido num dedal. Balzac desenrolava a sociedade francesa inteira de uma pensão, a casa da senhora Vauquer, de “O pai Goriot”. Machado de Assis compunha a vida brasileira do século XIX com três ou quatro peças familiares — digamos, Capitu, Bentinho, Escobar e José Dias. E a existência poucas vezes respirou tão profundamente  como numa foto de Cartier-Bresson. Mas isso requer atenção aos intervalos, aos espaços, às relações entre cá e lá. Parece que já não é o caso. A transformação do olhar em tato significa atribuir às coisas um sentido definitivo, independentemente do ponto de vista, da situação, dos vínculos entre os seres. Conrad Fiedler — o fundador da teoria da visibilidade pura — dizia que o tato não possui história. (Vale a pena lembrar que o erotismo não se reduz ao tato.) E isso por uma razão simples: ele apenas produz duplos, tautologias, cópias esmaecidas. Nunca esse raciocínio foi mais pertinente.

E então fico me perguntando qual é o verdadeiro Lar das Moças Cegas. Mas isso seria cometer uma enorme injustiça com aquelas moças operosas da cidade de Santos.

Trecho de A calma dos dias, de Rodrigo Naves (Companhia das Letras, 176 págs., 2014)

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Rodrigo Naves é crítico, historiador da arte e professor. Publicou El Greco (Brasiliense, 1985), Amilcar de Castro (Tangente, 1991), Nelson Felix (Cosac Naify, 1998), Goeldi (Cosac Naify, 1999), A forma difícil (2011) e A calma dos dias (2014), ambos pela Companhia das Letras, Van Gogh: A salvação pela pintura (editora Todavia), entre outros.

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Na imagem ilustrativa, Cartier-Bresson

 

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