Leia o capítulo “1914-1921: Na universidade ou no bar (Munique)”, da biografia Balões, vida e tempo de Guignard: novos caminhos para as artes em Minas e no Brasil, escrita por João Perdigão e publicada pela Editora Autêntica.

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É difícil dizer até que ponto a interação fora do lar influenciou na formação de Guignard, assim como não é possível afirmar onde e quando teria começado a beber. O alcoolismo o acompanhou pela vida, atrapalhando sua vontade de encontrar um amor duradouro ou, quem sabe, até a disciplina necessária para ser senhor de si mesmo. A mesa do bar era onde ele se sentia igual a todos, onde era bem tratado e respeitado.

Apesar da predisposição exacerbada de artistas para a vida boêmia nunca ter sido bem vista, a verdade é que, tanto nas classes populares quanto na classe média ou alta, essa vida noturna sempre enfeitiçou pessoas notórias e anônimas. Nos últimos três séculos, os bares, cafés e restaurantes moldaram o funcionamento da sociedade, estabelecendo-se como locais estratégicos para que seus frequentadores se sintam em casa. Ao redor dos artistas, sempre houve uma fauna humana riquíssima interagindo noite adentro nesses ambientes boêmios e em toda sorte de celebração que varre a madrugada.

Ao finalizar os estudos secundários em Munique, Guignard foi comemorar com seus companheiros numa cervejaria do Schwabing, famoso bairro boêmio. Também conhecido como Bairro Latino, possuía um ambiente semelhante ao de Montmartre, em Paris, ou do Greenwich Village, em Nova York. Assim como essas cidades, Munique também era uma meca contracultural que, mesmo durante a Primeira Guerra Mundial, vivia um período de ebulição. As vanguardas artísticas, literárias e políticas faziam cintilar a vida boêmia, com a nata da intelectualidade bebendo no Schwabing, por onde passaram personagens tão diversos como o futuro vencedor do Nobel de Literatura Thomas Mann (cuja mãe era brasileira), o poeta Rainer Maria Rilke, o teórico Walter Benjamin, o cineasta Fritz Lang e até mesmo Vladimir Lenin, um pouco antes de liderar a Revolução Russa.

Também passou por lá o pintor alemão Albert Weisgerber, citado por Guignard como uma referência importante em sua carreira. Weisgerber estudou em Munique com o mestre Franz von Stuck, que havia participado da Secessão, movimento vanguardista da última década do século XIX. Era amigo de Paul Klee e Wassily Kandinsky, que tiveram o mesmo mestre. O artista afirma ter conhecido o alemão pessoalmente, fato que só poderia ter acontecido durante a eclosão da Primeira Guerra Mundial, já que Weisgerber morreu em combate em 1915.

Traumatizado com o período que passou na escola agrícola em Freising, para onde não queria mais retornar, Guignard se encontrou com a mãe e lhe mostrou alguns desenhos, sensibilizando-a a matriculá-lo na Academia de Belas Artes de Munique. Ingressou na faculdade no segundo semestre de 1916, quando a Europa estava no meio da Primeira Guerra Mundial. Naqueles mesmos dias, na Suíça, onde morara até pouco tempo, surgia o Dadaísmo, movimento de vanguarda artística fundado como uma reação à violência da guerra, quando a política serviu-se da ciência e da tecnologia para maximizar as mortes nas trincheiras. A partir da vivência como interno num curso rural, a inspiração para Guignard fazer um curso tão excêntrico quanto Belas Artes num país em guerra foi uma decisão radical.

Mesmo com toda a tensão, viver na Alemanha beligerante foi benéfico para a educação de Guignard. À medida que ele se desenvolvia no fazer artístico, durante as férias fazia o seu Wanderjahre (1) pessoal. Enquanto tantos jovens e artistas morriam nas trincheiras, na Academia de Belas Artes de Munique, localizada no bairro Schwabing, Guignard viveu momentos de paz e inspiração. Nas redondezas da faculdade, visitava o Englischer Garten (Jardim Inglês).(2) Seu propósito era estudar e aprender desenho, no que foi guiado pelo mestre Hermann Groeber (1865-1935), que se formou na mesma escola e era reconhecido por promover um ambiente de irmandade entre os alunos, organizando encontros, carnavais e jantares – tanto celebrava que foi premiado, num salão em 1911, com um quadro festivo denominado Die Machüler (Os Estudantes). Guignard contaria, décadas depois, que o primeiro dia de aula com Groeber foi decisivo em sua carreira:

Quando cheguei, tomei um choque: sentada à minha frente, no meio do salão, estava uma mulher nua. Fiquei imóvel, no espanto de adolescente. Um colega então se aproximou e me apresentou à dama nua. Dei-lhe a mão. Protestaram: queriam um abraço. A modelo ria. Guignard na sua timidez brasileira de adolescente. Veio o abraço e começou a desenhar. (…)

Às vezes, eu me lembro daquele primeiro dia em que fiz o primeiro desenho na aula do velho Groeber. Resolvido o problema do desenho e seu espaço, qualquer coisa se abriu como uma porta e logo depois o desenho nasceu como uma flor estranha. (3)

No inverno e no verão de 1916 e 1917, Guignard frequentou a classe do mestre Adolf Hengeler, um caricaturista satírico que, depois de trabalhar na imprensa como ilustrador, tornou-se pintor autodidata, influenciado por artistas como Franz von Stuck. Em registros que deixou ao longo da vida, Guignard disse que, em Munique, estudou desenho por seis períodos e pintura por três – ou seja, faltaram-lhe três semestres para obter a graduação, que durava seis anos.

Com a guerra latente, a Europa tornara-se um barril de pólvora, e a situação para estrangeiros de países inimigos da Alemanha com- plicou até para os raros brasileiros antes mesmo da declaração de beligerância contra o país, que aconteceu em outubro de 1917. No dia 10 do mesmo mês, o jornal gaúcho A Federação trouxe o relato de Annita Rörecke, estudante de artes radicada na Alemanha desde 1910, expulsa do país em maio junto do diplomata Silvino Gurgel do Amaral. Na matéria, ela conta que, naqueles dias, a população sofria com “regulamentos severos para a alimentação, para o vestuário, para o calçado, para o consumo de luz, para o carvão, para as diversões etc.”. Fala também de seu encontro com nosso personagem: “Entre os brasileiros que conhecia naquela cidade, estava o pintor Alberto da Veiga Guinard [sic], carioca, que também receava o rompimento de relações devido ao torpedeamento do vapor nacional Paraná”. Quando o cargueiro Paraná foi abatido por submarinos alemães no mar da França, em abril de 1917, três brasileiros morreram. Como o Brasil já se demonstrava simpático à França no conflito, acabou rompendo relações com a Alemanha após manifestações nas principais capitais brasileiras, que contaram inclusive com a depredação de comércios que pertenciam a alemães. Num depoimento feito posteriormente, Guignard afirma que:

Com as incertezas da Grande Guerra, novamente interrompi os estudos. Nesse período, porém, manda a justiça que diga, fui eu e fomos todos nós, os estudantes brasileiros, muito bem tratados. A única exigência que nos faziam era a apresentação, três vezes por semana, na delegacia de polícia local. A pequena colônia brasileira que estava em Munique, quase toda composta de estudantes, ali permaneceu, sem que lhe tivesse acontecido coisa alguma. (4)

Em dias de paz, a cidade possuía museus que eram uma atração à parte para qualquer amante das artes, já que abrigavam obras muito importantes de todos os lugares e épocas. O principal era a Antiga Pinacoteca de Munique(5), com um acervo de clássicos produzidos por mestres alemães, holandeses, flamengos, franceses, espanhóis e italianos. A tela A Virgem do Cravo foi a primeira que viu de Leonardo da Vinci, artista referência de Guignard por toda a vida. Outra lembrança dos tempos de Munique foi uma exposição do grupo Die Brücke (A Ponte), ocorrida na galeria Thannhauser – há historiadores que contestam essa visita a tal mostra, já que os registros sobre o pintor são imprecisos.

De 1911 a 1914, Munique recebeu a presença do pintor russo Wassily Kandinsky, que marcou a educação local dando aulas como professor convidado na Academia de Belas Artes de Munique. Kandinsky também se tornou uma figura importante para a vanguarda artística ao fundar um grupo de arte com tendência abstrata, o Der Blaue Reiter (O Cavaleiro Azul), que, junto do grupo Die Brücke, formam os pilares do Expressionismo.

Durante a guerra, a escola funcionava irregularmente, sendo inclusive utilizada como base militar. Quando o conflito terminou, Munique continuou a viver uma constante tensão revolucionária(5), e Guignard foi espairecer: alheio a questões políticas, trancou a faculdade e viajou para desanuviar a mente, num passeio por vários países. Passou pela Holanda, onde foi conhecer de perto os pintores flamengos, e logo desceu a Paris, onde visitou museus e galerias e interagiu com os habitués dos cafés. O destino final dessa viagem foi uma casa de sua família em Grasse, sul da França, onde foi visitar a mãe e a irmã – e praticar desenho de paisagens.

De volta a Munique, que ainda estava longe de ver terminarem seus dias de aflição política, Guignard voltou a frequentar o Schwabing, paquerar e fazer amizades. Retornando à universidade, tomou aulas com o mestre Hengeler. O único relato detalhado que alguém fez de Guignard na Europa aconteceu no Schwabing, em 1921. Foi um encontro casual com dois artistas argentinos que, dentro de poucos anos, estariam entre os principais fundadores do Modernismo em seu país: Emilio Pettoruti e Xul Solar. Pettoruti contou em sua autobiografia, Un pintor ante el espejo (1968):

Eu e Xul fomos dançar no Bairro Latino, num desses pequenos cafés onde os casais literalmente não conseguem se mexer. Estávamos num deles quando, da mesa vizinha, um jovem me perguntou em português, com uma voz muito estranha que brotava através de um lábio leporino, de que país nós vínhamos. Respondemos e ele se apresentou: Alberto da Veiga Guignard, brasileiro, estava cursando a Academia de Belas Artes de Munique. Como eu a havia visitado e a considerava, por sua organização e ensino prático que ministrava, melhor que as italianas, antecipei-lhe minha impressão. Então ele me contou que havia estudado em Paris e havia se decidido por Munique justamente por isso.

Vimo-nos muito constantemente na capital da Baviera. Guignard tornou-se meu amigo, e eu, dele. Nos separamos com pesar. Desde então, e até 1929, ano em que voltamos a nos encontrar no Rio, jamais transcorreu um mês sem que eu recebesse um cartão postal seu. Era um amigo de fidelidade exemplar, muito generoso e bom! Fui encontrá-lo no Rio já como um pintor. Até onde eu sei, é o maior pintor que se possa apreciar no Brasil; mas se trata de um desses artistas, como Xul Solar, a quem se dará valor com o tempo. (7)

Desse encontro numa mesa de bar surgiu a amizade e, por consequência, um forte intercâmbio artístico com Pettoruti. Por ter uma experiência maior, o artista passava preciosas dicas para a formação de Guignard, que, logo em 1923, participou de sua primeira exposição coletiva no Palácio de Vidro de Munique. Mesmo sem se graduar na Academia, Guignard buscava novos ares para estudar; se mudaria para a cidade italiana a partir do conselho de Pettoruti, que vivera em Florença.

Naqueles mesmos anos, Adolf Hitler, também morador de Munique, fundou ali o Partido Nazista e tentou liderar um golpe militar que foi sufocado rapidamente, incidente que ficou conhecido como o Putsch de Munique.

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Notas

(1) O Wanderjahre era um roteiro de viagens culturais pelos principais países da Europa. O objetivo é educar jovens aristocratas com o que há de mais importante para se conhecer no ocidente – os cânones artísticos, os marcos arquitetônicos, os locais onde viveram grandes políticos e escritores ou que foram citados nos clássicos da arte, da literatura e da poesia.

(2) O Englischer Garten é um grande parque urbano com cerca de 4,17 km². Entre suas atrações, constam um monóptero de inspiração grega, a torre chinesa e a casa de chá japonesa, além de um grande lago e de uma área naturista.

(3) Extraído de uma entrevista do pintor, publicada na página 4 da revista Para Todos da 2a quinzena de julho de 1957, com o título “Afirma mestre Guignard: não sei desenhar”, concedida aos jornalistas Fritz Teixeira de Sales e Sebastião Nery.

(4) Trecho retirado da matéria “Do theatro da guérra: o regresso da nossa patricia Annita Rörecke – Sua educação artistica na Europa – Impressões do Velho Mundo”, publicada na página 5 do jornal A Federação em 10 de outubro de 1917.

(5) Inaugurada em 1836, a Antiga Pinacoteca de Munique (ou Alte Pinakothek, em alemão), com amplo acervo de obras produzidas entre os séculos XV e XVII, é um dos museus mais antigos do mundo. Ainda hoje, é um dos espaços alemães que mais recebe visitantes.

(6) Era o período da Revolução Alemã (1918-1919), que teve como uma de suas in- fluências a Revolução Russa de 1917 e a crise econômica causada pela derrota na Primeira Guerra Mundial, que abalou o país. Enquanto em Berlim, capital do país, foi fundada uma república parlamentarista, no sul, os comunistas conseguiram controlar a região da Baviera, onde fundaram a República Soviética da Baviera, com sede em Munique. Porém, a experiência socialista foi sufocada pelo governo social-democrata através do grupo paramilitar Freikorps, que matou cerca de mil pessoas na cidade.

(7) Trecho retirado da página 141 do livro Un pintor ante el espejo (1968), de Emilio Pettoruti. Tradução do autor.

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Balões, vida e tempo de Guignard: novos caminhos para as artes em Minas e no Brasil, de João Perdigão (Autêntica, 334 págs.)

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João Perdigão é jornalista, pesquisador, escritor e editor independente, além de especialista em Arte e Contemporaneidade pela Escola Guignard (UEMG). Seu primeiro livro, Tropecassino: um jogo em fantasia (2009), relata o processo de escrita, em coautoria com Euler Corradi, de O rei da roleta: a incrível vida de Joaquim Rolla (Casa da Palavra, 2012), biografia do empresário mineiro que levantou o Cassino da Urca. Logo depois, escreveu Viaduto Santa Tereza (Conceito, 2016), livro sobre o berço do hip hop de Belo Horizonte e um de seus principais cartões postais. Desde 2010, coedita a revista colaborativa A Zica, que a cada edição pauta temas provocativos e divulga artistas gráficos contemporâneos. Entre os principais temas de sua pesquisa atual destacam-se a história das artes gráficas, da fotografia e da arte urbana.

 

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